Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

A águia estava pronta e só não era perfeita por um detalhe. Ficava às costas, só podendo ser admirada através do espelho. Com ela sentia concretizar a adesão à causa. Os cabelos antes usados curtos tinham crescido. Deixara-os assim para serem cortados durante a esperada celebração de 20 de abril.

A grande noite chegara. Centenas de olhos se punham fixos no portão adornado com imagem semelhante à da tatuagem. Ouviu-se a salva de tiros e de par a par escancarou-se a entrada. Hermann compreendeu porque as meninas foram convocadas para mais cedo. Enfileiradas compunham duas alas portando bandeiras e tochas acesas. Ao meio delas eles marchavam.

Escutaram a gravação com a voz do homenageado, discursos, cantaram marchas de batalhas e mesmo o parabéns para você, gritaram em uníssono palavras de ordem contra negros, nordestinos, gays e os malditos judeus. Saudaram com fervor as lideranças. Duas ou três vezes deparou-se com a insistência de alguma lágrima a querer lhe saltar dos olhos.

O momento mais aguardado. Madrinhas, algumas daquelas moças que os receberam estavam no palco. O mestre de cerimônia chamou seu nome. Cumpriu a saudação com o braço direito levantado para a frente e gritou forte. O mais alto que os pulmões eram capazes. Teve dúvidas se por conta da emoção o grito fora convincente. O urro em resposta dizia que sim.

Subiu, beijou Priscila, arrancou a camiseta e se assentou. A turba exigia pressa na raspagem. Convocavam-no e, careca, lançou-se como numa piscina, aliás, do jeito que vira num show de rock. Acordou com Priscila a cuidar da ferida maior no braço. Fez força para abrir os olhos e havia uma nuvem neles. O inchaço provocado pelos socos deixara informe o rosto. Sentia gosto de sangue e lambeu os dentes verificando suas presenças. Receou que alguns se soltassem tão bambos estavam. A dor no peito era insuportável. Os chutes e porradas lhe tinham custado algumas costelas, com certeza. Vencera as provas, era um deles. Com um esgar de lábios deformados sorriu para o vulto que sabia ser sua namorada.

Doía para respirar, se mexer, ou permanecer quieto. Em orgulhoso silêncio suportava a dor. Gemiam por perto. Priscila sussurrou que o vizinho estava quase morto. Escutou o gargalhar do médico ao falar ao moribundo que quanto maiores as lamentações, mais demorada se daria a cura. As Walquírias no meio da noite a velar seus heróis adormecidos pelas porções cavalares de analgésicos, enquanto lá fora se celebrava a data com canto, cerveja e alegria.

Até retomarem melhor aparência iam permanecendo na enfermaria improvisada no sítio. Orgulho de Pri, forte por demais, em nenhuma hora chorara. Aproveitou aqueles dias para doutrinação da namorada. Explicou-lhe da necessidade de haver a cerimônia de iniciação. Fundamental para não deixar que moleirões, mulherzinhas sob a aparência masculina, estragassem a Falange.

Antes de conhecer Hermann nem imaginava haver gente assim tão convicta de uma causa. Alienada, era a típica maria vai com as outras. Quis saber por que ele se interessara por ela. Respondeu de pronto dizendo ter sido o porte altivo de mulher branca, orgulhosa de pertencer à superior estirpe, o motivo de haver se encantado. Ela sorriu, ao mesmo tempo lisongeada e assustada. Ela caloura e ele um cara de 28 anos levando, aos trancos e barrancos, o curso de Direito.

Confidenciou-lhe que aceitara a abordagem por conta do seu jeito de homem cuidadoso e delicado. Sentiu-se ridículo, teve raiva. “Como pudera passar tal imagem? Era macho duro. Pronto para resgatar nesse mundo dominado por judeus asquerosos a supremacia branca”. Priscila fingiu não reparar o desconforto e perguntou como se aproximara da Falange? Hermann lhe contou sua história.

Quando menino apanhara bastante. Sentia dificuldades para se entrosar nos grupos. Depois de reparar que as tentativas de aproximação geravam surras criou um mundo paralelo, seu cantinho mágico. Não conhecera o pai e a mãe era empregada de hotel. Nunca ganhou carinho e não a via interessada nas coisas dele. Adolescente decidiu ser forte para não apanhar jamais.

Na academia onde desenvolvia músculos conheceu a águia. “Cara, que tattoo maneira”. Ouviu a explicação, gostou e partiu para a internet. Convidado para um encontro encantou-se de vez, era acolhido. Enquanto malhavam aprendia sobre as inverdades espalhadas sobre o Terceiro Reich e os projetos para extirpar da humanidade judeus, os pervertidos viados e sapatonas, bem como exigirem o retorno para o Nordeste e África dos cabeça chata e pretos.

Priscila lhe afiançava que, ao contrário dele, não era ariana. Família de italianos, misturados com descendentes de portugueses – vindos de Pernambuco, detalhe que optou por omitir. Loura tinha aquela branquice simplesmente porque sua gente era assim. Mas lhe fazia bem saber que tinha o tal porte altivo. Hermann a incentivava para que tivesse orgulho das raízes, mesmo que obscuras. Dizia estudar os traços germânicos e notar que ela os possuia. Passou então a achar que devia mesmo ser ariana. Tinha ancestrais alemães que, num passado distante, migraram para os países de onde herdara o sangue.

Era neto de alemães. Nascera no Sul e, por força do destino, tiveram que partir para São Paulo, onde fora criado sem contato com as raízes. Seus pais tinham emigrado porque raças inferiores haviam tomado espaços de trabalho e educação que lhes eram, por direito, destinados desde todo o sempre.

Planejava viajar para conhecer os avós, beber da riqueza do vinho da ancestralidade, reforçar o carater superior da raça. Convidou-a. Tinha orgulho do namorado forte, corajoso, sabedor de tantas coisas, até sobre a origem dela, e que lhe mostrava o mundo sob um prisma tão bonito. Sim, iria junto.

Na chegada em casa assustou a mãe. “Meu filho, o que aconteceu?” Inventou a desculpa de que se engraçaram com Priscila e que reagira, sendo atacado pelo bando de pitboys. O corpo doía muito, o peito demais. Gritou, chorou bastante quando o auxiliava a tirar a camiseta. Por causa da tatuagem, resistiu quando ela fez menção de retirar a faixa no peito. Dormiria sem banho. Na manhã seguinte trataria com a mãe da questão da águia e de tudo que ela representava.

“Você carrega a suástica nas costas e isto não tem nada a ver com sua história”. Reagiu indignada. “Sim, mamãe, sou adepto de uma causa. A tatuagem é para que todos saibam o sentido da minha luta”. Esforçou-se para falar ao filho da incoerência daquilo, mas foi rechaçada. Desde há muito não conversavam. “Estivesse seu pai aqui nada disto estaria acontecendo”.

Comentando com um companheiro a respeito das insistências da mãe em lhe questionar a tatuagem, recebeu o conselho de cair fora oferecendo parceria na divisão do quarto onde morava. Convite perfeito, livrava-se da velha e residiria mais perto da faculdade e do serviço na loja, onde trabalhava parte da noite e domingos.

Necessitava de dinheiro e uns dias de folga para a viagem ao Sul. Não demorou muito e da Rodoviária do Tietê o ônibus partia com os dois.
Em pesquisas na internet descobrira o quão comum era o sobrenome materno onde nascera. Os do pai não lhe traziam maiores interesses: Silva Pereira. Por demais portugueses, num primeiro olhar incompatíveis mesmo com sua condição ariana. Existia uma pousada Mahler e não seria em outro lugar que se hospedariam. Início da madrugada e preenchia solene a ficha de hóspedes, diante de um sonolento e rechonchudo empregado louro. Em letras maiores deixou grafado: Sr. e Sra. Mahler.

O café da manhã os encontrou a buscar semelhanças nos traços fisionômicos dos empregados. De antemão tinham definido não ser o rapaz da noite parente. À mocinha que os servia e que acharam parecida, indagou se seria da família. Negou sorrindo: “sou só empregada. Perguntou se havia algum Mahler com quem pudessem falar. “Sim, que buscassem Dona Franzisca, a proprietária. Seria encontrada na casa ao lado”.

A idosa os recebeu friamente. Apresentaram-se e seus olhos ganharam vida. Agora os via intrigada e sorridente. “Meu Deus, você é o menino?” Perguntava coçando os cabelos brancos. “Que menino?” Devolveu-lhe curioso. E Franzisca contou uma história.

Sim somos parentes, sou sua tia avó. Sua mãe, recepcionista no hotel, se encantara por um mulato. Vendedor que de vez em quando aparecia com bugigangas. Daquele caso, que tanto incomodava a todos, engravidara. Seu avô despediu sua mãe e minha irmã me implorou que tivesse compaixão e a acolhesse. O crioulo jamais retornou.

Confesso ter sentido bastante medo de que o sangue paterno prevalesse. Aliviei-me ao vê-lo nascer branquinho. Alertada por uma vizinha esperei um pouco, pois que se dizia que filho de urubu sai do ovo branco, mas o tempo passava e você, eu confirmava, era dos nossos.

O problema era a paixão da sua mãe. Dessa não consegui dar cabo. Vivia pelos cantos chorosa. Escreveu cartas e mais cartas, que invariavelmente retornavam, para o endereço das fichas. Fez centenas de tentativas ao telefone, nenhuma se completou. Sem me dizer nada juntou as coisas, viajando vocês dois para a cidade do seu pai.


De lá veio só uma carta agradecida por tê-la assumido e relatando ter encontrado seu homem. Era casado e dono de uma penca de filhos. Confessava sentir ódio e vergonha, o que a impediam de retornar por aquele tempo. O filho quando crescesse jamais iria saber daquele fato. Diria que o pai morrera o que não era mentira eis que o estava sepultando no coração. Terminava dizendo para que guardasse a vaga no hotel porque logo estaria de volta. Não veio e nem deu mais notícias. Achávamos que ocorrera alguma tragédia. Por isto o susto, e ao mesmo tempo a alegria, de saber quem você é. Conte-me as notícias da minha sobrinha.

Priscila se lembrou de um fato na enfermaria do sítio, que desconcertara o namorado, fazendo com que sentisse ódio daquele médico idiota. O doutor, ao examinar as feridas lhes disse faltarem àquele corpo traços de pureza. E que as duas pintas grandes, uma acima da águia e a outra pouco abaixo da súastica presas às garras, provavam correr nas veias do namorado sangue impuro.

Hermann levantou-se balançando negativamente a cabeça, parecia zumbi descendo as escadas da varanda. Ela correu para o namorado. Com um palavrão mandou que o deixasse. Priscila entendeu que ele precisava de um tempo a sós. Voltou para Franzisca. Queria saber mais detalhes daquilo enquanto esperava. A alemã, desentendida da partida do ‘menino’ continuava com os casos familiares. O tempo passava e como Hermann não voltou, despediu-se e saiu às ruas da pacata cidadezinha. Subiu e desceu ladeiras, visitou praças, entrou em Igrejas e nada.

Retornou ao hotel. Seu amor, de novo, necessitava dos seus cuidados. No início da noite esteve na delegacia. O policial a magoou, ao lhe sugerir tratar-se de “briguinha de namorados”. Aconselhou-a a aguardar mais um pouco: “O frio chega e ele buscará abrigo”.

Permaneceu sentada diante da porta, próxima de onde o rapaz louro e rechonchudo roncava. Rezou as poucas orações que recordava. A manhã chegou, retornou à polícia e lhe deram mais crédito. Lançariam um alerta de desaparecimento, mas que ficasse tranquila. “Por essas bandas ninguém some”. Lembrou-se da futura sogra e se manteve muda.

Passado um mês, primeiro para passar o tempo, depois para pagar as diárias, agia como se empregada fosse. Mais dois meses e dormia num quartinho nos fundos. Dois anos depois estava grávida do neto de Franzisca. O filho se chamaria Hermann.

 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 11/04/2016
Alterado em 15/09/2016
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras