A garrafa tão bonita traz o desejo de torná-la delicado vaso aos pés da santinha e a mãe pela primeira vez compra o azeite. Arrependida da aquisição, sai do supermercado e caminha com as compras. Há de fazer ginásticas para que o dinheiro dure até o final da comprida quinzena.
Ao entrar há a troca. A filha lhe passa a criancinha recebendo no lugar as sacolas de plástico. Cuidadosa, guarda cada coisa em seu devido lugar até que topa com aquilo. Cheira, mas não há nada de novo, somente os odores conhecidos que impregnam o que vem de supermercados. Palma da mão e dedos investigativos tentam compreender o estranho objeto e assim, parecendo acariciá-lo, assenta-se do lado da mãe na penumbra de alimentar o bebê.
“Conte-me do mar”. Pede, e a mãe cansada fecha os olhos e lhe apresenta, mais uma vez, as maravilhas do oceano. Oferece-lhe um mar fantástico, cheio de fadas, duendes, castelos ocultos sob a superfície. Um mar de peixes maravilhosos, constituido de praias com areias finíssimas que dão gosto de se pisar. Um mar de ondas dançantes, coberto por um céu feito de túneis feéricos de tanto brilho. Um mar incrível onde estão parques com alamedas ladeadas por árvores frutíferas, flores de todos os formatos, aromas e belezas. Mar de milhares de bichos e passarinhos. Naquele dia, além das histórias marítimas, a filha tem outra pergunta:
“Mãe, o que é isto?” “Ah, minha filha, é garrafa de azeite, uma espécie de óleo gostoso que se põe na comida. Mas não é por causa do sabor que a trouxe, é que a Mãezinha do Céu que de nós cuida, merece de vez em quando uma flor. Quando esvaziar vai ter sempre uma rosa bonita para ela”.
E o azeite torna-se algo muito bem usado e apreciado. Ótimo para ser derramado sobre o pão endurecido, fazendo-o retomar a maciez e criando gosto de se dar água na boca. Vira boneca de brinquedo a girar, delicada, entre as mãos sentindo, mais que a lisura do vidro, suas formas diferentes.
A ideia nasce do filme na televisão. Escuta a vida de um velho marinheiro a levar em suas viagens quantidades de garrafas. A cada dia uma é lançada ao mar levando carta. Ritual que cumpre por anos, esperançoso de que haja retorno. O enredo termina com o homem morto e a chegada ao velório da menina com uma garrafa.
Não entende por que desde muito cedo a filha tem tanto interesse pelos mistérios do mar. Moram longe dele, mas a mãe trabalha em suas vizinhanças e o observa ao limpar os vidros dos apartamentos das patroas. Em suas invencionices uma noite resolve transportar para a outra banda da rua o trabalho. Ao invés do lado de cá da Avenida Litorânea com seus chiques apartamentos, diz passar o dia do lado de lá, bem no meio do mar.
“Mãe, não tem mais azeite e quero a garrafa para mim”. “Minha filha, ela é da nossa santinha”. “Mas você arruma outra para Nossa Senhora.” E a mãe, sem ter como dizer não, cede. Nem acaba de receber o sim e acontece o segundo pedido. “Mãe, consegue para mim uma rolha?” “Mas para que precisa de rolha, menina?” “É que quero mandar uma mensagem dentro dela, preciso também de papel e lápis para escrever a carta.” E a mãe, que nada sabia das letras e palavras estava incumbida de redigir a mensagem sem nem saber qual seja ela.
Na noite seguinte chega em casa trazendo não só os pedidos da filha, como também uma garrafa azul para a imagem da Virgem apanhada em alguma lixeira pelo caminho. Enquanto a criança mama a mãe escuta a mensagem da filha e rabisca, garatunha, desenha, borda e devolve o papel. Ela o enrola e enfia na garrafa tapando-a. “Mãe, leve a garrafa até o mar e a jogue bem longe para que viaje. Quero que do outro lado do mundo venha a resposta”.
A mãe mete a garrafa na bolsa e a carrega no passeio, por vários dias, pelos caminhos entre o barracão no alto do morro e os prédios da beira mar. “Mãe, você está vigiando a praia?” “Claro, olho o mar a toda hora.” E emenda mais alguns pedaços de histórias ainda mais bonitas e extraordinárias. “Dona Piabona partiu do riacho onde mora para visitar suas amigas no mar, umas bordadeiras voadoras que vivem sorrindo. Ao me ver ela perguntou por você, minha filha. Disse que está bem e que nos ajudasse, pedindo às companheiras para que procurassem nas águas a garrafa. Logo que a vejam que a empurrem então para a terra vindo me chamar.”
A ansiedade da filha todo dia aumenta. A mãe, num final de tarde, arranca folha no caderno, largado à mesa, do filho da patroa chata. Pega uns lápis de cor e desenha, como se fossem letras a se juntar em palavras de misteriosos sentidos. Tira do fundo da garrafa o papel, enrola este novo e o enfia.
A filha na porta com o bebê chorando e a mãe grita lá de baixo: “A garrafa está comigo.” Naquela noite a mãe lê para a filha, a partir daquelas figuras cheias de magia e encanto, tudo o que os amigos da menina lhe contam desde o lado de lá do mundo. E os sonhos da menina se tornam tão grandes e pesados que a mergulham. Abraçada à garrafa adormece guardada na escuridão absoluta do profundo mar.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 25/04/2016
Alterado em 15/09/2016