Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

ABRAÇO PARA O SONHO

Trata-se aqui do romance acontecido entre dois ermitões urbanos. Como gente assim não se junta em grupos de autoajuda, grêmios para bater papo, ou clubes de jogar baralho, vivendo isolados cada qual em seu esconderijo, era mesmo imponderável que se reunissem. Mas o destino - ou seria a providência divina? - prega peças e o fato é que namoravam.

Um caso meio esquisito, não somente por serem reclusos, ou porque se tratassem de duas pessoas bastante maduras. Era estranho porque passavam a impressão de que não apreciavam a proximidade de gente. Bem mais do que dos tatos e carícias, viviam um romance constituído quase que somente pela cumplicidade de um saber que o outro existia e o compreendia. Namoravam preservando entre si uma distância segura evitando, dessa forma, que sentissem invadidas suas privacidades.

Provavelmente nem se gostassem quando, após se conhecerem, aconteceu a aproximação um do outro. É bem possível que isto tenha se dado somente pelas necessidades do corpo. Apenas os mais argutos dentre a vizinhança e colegas de trabalho de Laís e do português Tertuliano Barata, seriam capazes de perceber aquele relacionamento.

E desse jeito a vida seguia, até que, uns dez anos depois, Tertuliano caiu doente. Um derrame o deixou sem fala e com o lado direito do corpo paralisado. Parentada sem contato e alheio aos companheiros de trabalho, só havia Laís para os cuidados de que passou a necessitar após a alta do hospital.

Tratava-se de nova relação e o começo dela não foi fácil. Só em pensar na possibilidade de que alguém haveria de mexer em seus guardados, apavorava o doente. Ainda mais sendo Laís aquela que iria lhe conhecer os segredos guardados em fundos de gaveta, detalhes meio escabrosos da vida oculta e os escritos com tanto cuidado preservados. No hospital se fingia de morto ao ser tocado, virado, lavado e vestido. Com Laís era mil vezes pior. Sentia raiva da impotência e ao constatar que seus grunhidos eram ou incompreendidos, ou solenemente ignorados, fez opção pelo silêncio.

Laís também se via presa numa arapuca. Aquele namoro conveniente no qual se buscava o outro somente pelas carências sentidas, passara a lhe exigir doação e nada era pior do que se ver à disposição de alguém. Estudou a doença e soube que ele sofrera um AVC 5 e que o nível seguinte era o óbito. Depreendeu que não duraria muito. Então faria o sacrifício, até que, tomara que ocorresse logo, novo acidente vascular o levasse. Para aumentar ainda mais a aflição descobriu que, apesar de fazerem sexo há tanto tempo, não existia praticamente nenhuma intimidade entre eles.

A princípio vinha pelas onze horas. Alimentava-o, arrumava o apartamento, lhe aplicava um banho de toalha, metia-lhe a fralda geriátrica e ia embora silenciosa. O doente rapidamente definhava. Era abrir a porta e sentir o cheiro ruim. Barata todo sujo e molhado, olhos fundos de quem está com a vida minguada de desidratado.

Ao ver, numa manhã, estampada na primeira página do jornal sensacionalista a foto de um defunto tendo no corpo vários tiros, boca aberta e torta, achou-o parecido com seu namorado. Tomou um choque. Deixá-lo morrer assim a faria cúmplice de assassinato. Não iria carregar este remorso.

Mudou-se com armas e bagagens. O carinho do cuidado, o afeto em pequenos gestos, o dar e receber a comida na boca, o limpar suas sujeiras, foram transformando o casal. Pouco tempo depois se alguém os visse, o que era difícil de ocorrer, iria achar que se tratassem de dois velhos que se amavam muito e desde toda a vida.

Achando que aquele lugar claustrofóbico e mal iluminado não fazia bem a Tertuliano, Laís lhe fez uma proposta: “Por que não vender os apartamentos e terminar a vida num sítio?” Ele rosnou algo que ela entendeu como aquiescência.

Menos de três meses e se mudaram para a beira de um morro. A casa bem espaçosa, jardim em volta, do lado direito um pomar e nos fundos dois galpões bem grandes nos quais o antigo morador criava galinhas. Depois da granja uma florestazinha preservada e na divisa o regato que corria desde o morro a lhes ofertar água pura.

Tertuliano Barata aproveitou quase nada daquele paraíso. Poucos meses morando lá, o caseiro já sendo recebido com mais confiança por Laís, para ajudá-la a levar o doente aos banhos de sol e sobreveio o segundo AVC. Desesperada, marido emborcado no banco de trás do carro, voando para o hospital. Uma semana de UTI e ele, ao apresentar melhora de poder ser transferido para um quarto, morre.

A princípio quis vender a chácara. Refletiu: “sair daqui e ir para onde?” Foi ficando, tomando gosto pelo lugar. A primeira decisão foi demitir o caseiro. Incomodava-a vê-lo andando por lá, como se a estivesse observando. Ele até lhe ponderou num parco vocabulário, que não era seguro uma mulher morar sozinha num lugar isolado daqueles. Ainda mais na idade dela e que nem cachorro possuía. Respondeu que não tinha medo: “Deus cuida de mim”. Laís, ermitã, agora se isolava integralmente. Uma ida ao supermercado e banco por mês e ninguém mais para ver, lhe dirigir a palavra, torrar a paciência.

Descuidada de si nem banho tomava, muito menos limpava a casa. Existia esquecida até dos horários normais para se alimentar. Vida ao Deus dará, como bicho velho e rabugento em sua toca, desiludido de tudo e só esperando o final. Viu o gambá na cozinha sem saber como escapar. Abriu a porta e o bicho saiu correndo em direção aos galpões e Laís que só vivia dentro de casa, achou por bem espantar da vizinhança aquele bicho folgado.

Ao entrar o bafo quente e úmido de material em decomposição agrediu suas narinas. Nada se via e buscou uma vela. Cócegas nos pés abaixa a luz e se vê rodeada de milhões de bichos. Parecendo aflitos com a presença da intrusa correm desesperados em todas as direções, até mesmo subindo em suas pernas. Chão, paredes, locais dos ninhos de aves, prateleiras, teto. Tudo coberto por baratas. Laís não teve medo, ao contrário, apreciou aquele contato frio.

O galpão passou a ser visitado, primeiro aos poucos, depois diariamente. Quando saía para buscar comida trazia também um saco de ração para cachorro que moía, misturava com restos, folhas da horta, frutas do pomar, tudo que pudesse ser agradável ao paladar das novas amigas.

Cuidara de Tertuliano e agora cria baratas. Muda-se, dorme com elas. Ariscas, as mais aventureiras e que vem passear em seu corpo, ao menor movimento partem em disparada, saltando, descendo, voando talvez. Para tê-las todas breia-se com uma pasta gosmenta feita de amendoim, ovos, leite e óleo. Besuntada, Laís se deita, braços em cruz e seu corpo é coberto. Há que soprar forte para liberar as narinas, não ser sufocada. Abraço delicioso daquele lençol vivo. Tertuliano Barata vem chegando para fazer Laís sonhar.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 20/06/2016
Alterado em 15/09/2016


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