Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

O REDEMOINHO 

Não havia para onde escapar, a ventania lhe contava da sua chegada. A roda se aproximava célere, vinha girando em sua dança louca. Trazia seu hálito, carregava o olhar que tanto o inebriava e seduzia. Ela chegava roçando suas costas o acuando. Ao se ver assim, sem saída, teve a consciência de que muito mais do que apanhá-lo, Lúcia se vingava, divertindo-se ao vê-lo fracassado nas tentativas de fugir, como o gato sabe que o rato, por mais que tente se esconder, está sob seu controle.

Foi nas bodas de 15 anos que Danilo a conheceu. Acompanhava o marido, chefe de Magda. Notou que ela o olhava diferente, ou foi depois do acontecido que se deu conta de que desde aquele momento era ele o escolhido? Já madrugada e um último grupo, liderado pelos aniversariantes, se divertia na pista de dança. Principiou uma música romântica e ela se postou entre os donos da festa abraçando Danilo e ordenando ao esposo para que dançasse com Magda. Justificava às gargalhadas, gritando para se fazer ouvir, que os convidados deviam bailar com os noivos antes da festa terminar, que isto trazia sorte.

Logo após começaram as coincidências. O primeiro encontro no metrô. O segundo quando estava almoçando só, perto do trabalho e ela chegou sentando-se em sua mesa. Na terceira vez lhe disse que se sentia solitária por conta das constantes viagens do marido. Com alguma malícia lhe respondeu que não seria difícil arrumar companhia, ainda mais em se tratando dela, uma mulher bastante interessante e bela. Um dia, provocou-lhe calafrios ao tomar sua mão e lhe dizer que desejava demais a sua presença. Ponderou que vivia uma segunda lua de mel com Magda, mais longa e gostosa, que se amavam muito e que definitivamente ele não era a pessoa mais indicada para lhe suprir a solidão. Lúcia franziu a testa, mirou-o nos olhos e, mãos dadas, falou sorrindo como se dissesse que o dia estava bonito: “você não sabia que quando desejo algo eu nunca desisto e que te quero?”

Danilo riu entre assustado e sem graça, balançou negativamente a cabeça, recordou-se de que também a tinha olhado quando chegou naquela noite. Mulher que emanava poder, imponente, não tão bonita quanto Magda, mas que sabia chamar a atenção com sua altura e aquele vestido vermelho decotado e colado ao corpo. Lembrou-se também de haver sentido que ela se encostava nele durante a dança com os noivos ao fim da festa, o que naquela hora atribuiu à bebida. Pressentia o tamanho da ribanceira e, tentando manter a calma, lhe falou que o melhor a fazer seria não mais se encontrarem e que se fosse o caso de se verem, que Magda ou seu marido estivessem por perto. Desculpou-se dizendo precisar voltar rápido ao escritório e se despediu aliviado de que Lúcia o havia compreendido.

Não deu certo, ela aparecia do nada, como no dia em que ao sair da empresa, deparou-se, sem guarda-chuva, com o forte temporal. Do outro lado da calçada deu de cara com o vidro meio aberto do carro e Lúcia a chamá-lo. Da mesma forma que a enxurrada inconsciente segue para o bueiro entrou no carro. Indagou-lhe, de supetão, por que ela havia tomado conta da sua mente e pensamentos? Ela respondeu com um indefinido muxoxo. Olhando fixamente o movimento frenético dos limpadores de parabrisa, Danilo caiu em conta da prisão em que estava metido.

Toda terça e quinta-feira se encontravam. Magda estava intrigada com as mudanças na rotina e a duplicação da planta industrial foi a desculpa arranjada. Explicou-lhe da criação de um grupo que se reunia duas vezes por semana, após o expediente, para estudar o novo processo.

Lúcia veio com a reclamação de que dois dias por semana eram insuficientes. Ponderou serem os dois casados e que aquilo já estava de bom tamanho, que não teria condições de lhe oferecer mais. Então ela jogou no ar que poderia mexer os pauzinhos para que houvesse mais tempo para os dois. “Estaremos muito mais juntos” disse, enquanto ele meneava negativamente a cabeça.

Poucas semanas após ela lhe confidenciou que o esposo caíra doente. Sentia-se fraco e que, apesar do tanto de exames feitos, os médicos não chegavam a um diagnóstico. Danilo lhe indagou se era algo sério e ela, com jeito de menininha frágil, balançou a cabeça para a frente. “Parece que é.” Em casa, Magda já tinha lhe contado da estranha moléstia do seu gerente.

Na semana seguinte o hospitalizaram e nem com seu homem internado Lúcia quis alterar o programa dos dois. “Ele desistiu de lutar, descansou”. Foi o que, um mês e pouco depois ela falou ao telefone. No velório Lúcia, ao lado do caixão, chorava em desespero abraçada ao filho adolescente. Tal cena fez com que Danilo mandasse para distante os pensamentos de que ela estava feliz com aquela doença e morte. Na missa de sétimo dia Lúcia era um pranto só. Ao final teve forças para ler um texto de despedida que a todos emocionou.

Sem as amarras do casamento ela se tornaria ainda mais exigente e isto apavorava Danilo. Mesmo com as traições sentia amar Magda e não tinha a menor intenção de largar mulher e filha. Ao mesmo tempo, o carinho diferente, a malícia, os prazeres e o gozo com Lúcia eram indescritíveis. Levavam-no ao alto, faziam-no descobrir novas cores, nessas horas parecia voar para o seio do mais lindo arco íris. O remorso intenso sentido ao final dos primeiros encontros, aos poucos foi tomando tons mais esmaecidos, até que tudo se tornara normal. Danilo tinha duas mulheres. Amava-as demais e de maneira bem distinta. Cada uma com suas delícias e belezas.

Magda, que desde a primeira vez, nas bodas, não simpatizara com Lúcia, sentira algo no velório e na missa. Os abraços da viúva ao seu homem, sem dúvida que foram mais intensos dos que os dados às outras pessoas. Numa noite falou com ele sobre suas angústias e receios. Danilo, tentando esconder o susto, lhe retrucou ser bobagem, que os abraços eram todos do mesmo tamanho, inclusive aquele que ela mesma recebera de Lúcia. “Que deixasse de ser cismada”. Foi a frase com que terminou a conversa. Virando-se para o lado, fingiu dormir.

A relação em casa tão boa até a festa dos 15 anos de casamento, estava péssima. Danilo contou para Lúcia do plano de Magda de casar a semana de folga a que tinha direito, com o recesso na escola de Daniela. Passariam aqueles dias em Vitória com a mãe e avó. Ela lhe perguntou se não seria temerário que viajassem as duas por essas estradas violentas. Disse que concordava, mas que ela não o estava escutando praticamente em mais nada, desconfiada de que havia uma amante na história e, mais ainda, que essa tal era Lúcia. A risada irônica dela não deixou de lhe incomodar.

O telefone chamou e era Lúcia a lhe perguntar se estava tudo bem. Respondeu que sim, que tudo dera certo, naquela semana, solteiro, teriam todo tempo do mundo. Uns dez minutos depois o telefone tocou novamente. Era Magda, mas a voz era masculina. “Estou ligando para o primeiro número registrado nesse telefone. O que o senhor é da dona dele? ”. Gelou de medo imaginando filha e esposa sequestradas. Disse ser o marido e a voz se identificou como policial. Que ela sofrera um assalto ainda nos subúrbios. Deu a estrada, o número do quilômetro e lhe pediu para que fosse para lá.

Apanhou o carro e saiu, trêmulo, esbaforido. Pelo caminho a tragédia ia tomando forma. Pensou que se as duas estivessem vivas o endereço dado teria sido o de uma delegacia na melhor hipótese, ou de um hospital na pior. Caso estivessem bem teria sido uma das duas a ligar. Começou a chorar com raiva, tristeza, desespero, remorso, tudo misturado. Junto às viaturas da Polícia Rodoviária, viu o carro voltado para a contramão com o vidro dianteiro todo furado. Pelas portas arreganhadas, não se sabe se abertas pela polícia, ou mesmo se ocorreu uma tentativa de fuga, os corpos de Magda e Daniela, não fosse pelo sangue, pareciam adormecidos.

Poucos minutos depois, aguardando perícia e trâmites legais, viu Lúcia chegar. “Meu amor, que coisa terrível. Já sabe o que aconteceu mesmo? Elas foram assaltadas e reagiram? O que a polícia lhe disse?” Ventava forte e um redemoinho girava no pasto do outro lado da pista.Ela sabia do acontecido e ele só havia falado para o diretor e a secretária que mulher e filha tinham sido assaltadas e que iria buscá-las. Meu Deus, tudo se fazia claro, Lúcia, arruinara sua vida. Em meio ao turbilhão de dor e pensamentos desencontrados, só vislumbrava uma saída: Fugir, escapar daquela gaiola, sair daquela prisão, sumir no mundo.

Pediu para Lucia permanecer ali velando os corpos, enquanto iria tentar na Delegacia a agilização dos procedimentos para liberação dos corpos. Alguns quilômetros adiante entrou à esquerda no trevo. Dirigiu por sete horas desrespeitando limites de velocidade e radares. Abasteceu e foi em frente de novo. Ali já era o alto sertão da Bahia. Uma pedra imensa impunha-se sob a luz da lua cheia a tomar conta da planície. Foi até onde dava, largou o carro, atravessou cercas e um córrego, cruzou pastos, machucou-se em espinheiros, caiu e se levantou várias vezes escalando a pedra. O dia chegava quando se viu lá no alto, sujo, mãos e braços lanhados, joelhos feridos e os pés inchados. Sentou-se bem à beira do precipício. Lá, muito adiante, avistou o redemoinho. Lúcia chegava. Danilo então se libertou.
 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 18/07/2016
Alterado em 15/09/2016


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