Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

 
NOVO SÓCIO
 
Bicava o uísque quando o telefone vibrou pela primeira vez. Aquele micro gole para se ganhar coragem e caminhar até à mesa da morena. Cabelos lisos, muito negros, a escorrer pelas costas quase nuas do vestido da mesma cor. Quando entraram – eram três - já avaliava, tentando esconder o bocejo, o investimento daquela noite: dos mais negativos nos últimos tempos. Sem dúvidas que eram chegadas de alguma festa que, ou terminara cedo demais, ou não contava com gente interessante o suficiente que as prendesse.

A oportunidade surgiu quando as companheiras se levantaram rumo
à pista de dança. A segunda vez que sentiu o toque considerou-o como sinal de que só um pouco mais de insistência e teria ultrapassado aquela barreira sutil que separa o galanteador cônscio de sua competência, do inconveniente sem noção de ter levado um fora. Buscando manter a dignidade nos passos, baixou a vista diante daqueles grandes olhos negros e voltou à solidão da mesa. Pensou em pedir a conta, mas recuou. Nessas horas melhor não partir de imediato. Não daria a ela o gosto da vitória. Mirou um ponto entre as prateleiras de bebidas e a parede de vidro deixando passar o tempo. O celular insistiu mais uma vez.  

O taxi de sempre e a saudação do motorista lhe trouxeram a segunda avaliação da noite: hora de saltar de galho. Tornara-se conhecido demais por ali. Viu que as tr
ês chamadas tinham partido da Delegacia.
 
- Doutor, desculpas por estar ligando, mas o senhor precisa saber d
a novidade. Num assalto um primo do Secretario de Segurança, gente bastante ligada a ele, reagiu atirou em um dos bandidos e levou um balaço do comparsa dele. O parente ainda foi levado ao hospital e o outro morreu na hora. O Secretário está vindo para cá.

- Mudança de rumo. Toca para a 8ª DP ali na Praça de Santo Apolônio.

Mandou que o taxi parasse um pouco antes do prédio. Ao pegar o troco franziu o cenho por conta da insinuação de que tomasse cuidado porque polícia é bicho perigoso. Taxista abusado e babaca. Deve agradecer a Deus por ter sido comigo, imagine se houvesse falado isto com o Afrânio ou com algum outro, desses que não toleram desaforo? Ia pensando enquanto dava a volta por trás dos veículos oficiais, rumo
à entrada de serviço. Não daria o mole de chegar pela porta principal, ser chamado de doutor por algum policial sem noção e de cara, depois de três uísques duplos, ter que dar declarações aos repórteres dos jornais sensacionalistas, cujos carros estavam parados à porta.

Chamou o plantonista
à sala da carceragem e se inteirou da ocorrência. De repente o burburinho da chegada lá na frente do Secretário de Segurança, acompanhado por Petrúcio Flores, o Delegado Geral. Passou pelo toalete, num copo no alto do basculante pegou o tubo de Kolynos amassado, apertou-o. Fez uns gargarejos depois de passar o dedo melado pela língua e dentes na ilusão de esconder o bafo.

Ao aperto de mão do Secretário, a quem conhecia só da TV, teve confirmado o que já escutara dele. Homem que não tem força para o cumprimento e tem a mão fria e lisa demais é dono de vida dupla. Chegando-se para frente na cadeira a autoridade olha para a porta entreaberta. Entendido o recado o Delegado Geral a fechou.  

- Este caso deve ser tratado com o máximo cuidado, doutor.

- Sim, Secretário, o senhor esteja tranquilo que nos empenharemos ao máximo e que daqui a pouco teremos preso o assassino do seu primo. 

- Não é isto que vamos fazer. A ordem é exatamente oposta a esta. O senhor coloque alguém de confiança no caso e este fará tudo para esquecer as pistas. Sabemos quem é o homem e há gente em seu encalço. Daqui a pouco ele também estará deitado. O que irá
tratar é de cuidar da ocorrência com toda a discrição, evitando ao máximo repórteres e demais curiosos. A meta é simples: arquivar o mais rápido possível o caso. 

- Sim, senhor, entendido agora. Trata-se de ocorr
ência a ser abafada. Que ajamos como se nessa noite nada do que aqui constatamos aconteceu.

- Isto mesmo. E vi que começamos mal. Encontrar os dois bisbilhoteiros desses pasquins foi foda. Agora é
dar carne aos cães e isto já está sendo providenciado. Daqui a pouco a Homicídios irá correndo rumo à clínica de abortos no Moinho Antigo. Será estourada para desviar a atenção. Prender os fabricantes de anjinhos e deixar a sociedade em dúvida sobre se aquelas mães lá internadas seriam assassinas, ou se vítimas. Isto dará boas manchetes e artigos. Petrúcio ficará só no canto da primeira página, o que, considerando as circunstâncias, já é razoável lucro. Agora vou cuidar de mim. Noite besta essa que a vida me tomou na mão grande.

- A bola é sua, companheiro. Você é inteligente e compreendeu o Secretário. Não é atoa que te coloquei nessa delegacia. Cuida dela para que continue redondinha. Bolas quadradas carregam riscos.

Deixou que saíssem da sala. Nem meio minuto tinha se passado e a escrivã
Vanessa mete a cara na porta. Pede um tempo para arrumar os pensamentos e assim poder passar, com segurança, as orientações visando a não elucidação do caso, ao mesmo tempo em que as ordens dadas dessem a impressão de os encaminharem na direção da resolução dos crimes. Esse era o tamanho da encrenca em que se metera. Recorda-se do motorista a lhe alertar que mexer com polícia pode ser perigoso. O fresco tinha razão constata. Chama então a turma e faz a reunião. Deixa de fora o carcereiro e os motoristas, que desses guarda algumas desconfianças. Vanessa traz a surpresa:

- Os dois
mortos possuem algo em comum, doutor. Ao lavrar a ocorrência reparei que os dois nasceram no mesmo dia e ano. Vieram ao mundo e partiram dessa vida para a melhor assim juntinhos. Coincidência mais estranha essa. Fosse só isto. Tem mais ainda: Além de comemorarem os aniversários lado a lado, são oriundos da mesma cidade: Salvador.

- Houvessem nascido num lugar pequeno e estaria de pé a possibilidade de se tratarem de g
êmeos.

Apesar de rirem da tirada do detetive Pacheco, por que não considerar tal hipótese? Refletiu Antero, ao mesmo tempo, em que Secretário, Delegado Geral e a belezura estonteante de olhos escuros e cabelos compridos que lhe dera o fora, pouco mais de sessenta minutos tinham se passado, se misturavam na mente.

Ao sair chegava a notícia do pai que assassinara os dois filhos e a esposa a facadas. Matar gente amada a tiros ainda vai, mas assim de perto, tocando a carne deles? Que bom, crime assim tão hediondo chegando na hora certa – Que Deus desculpasse –, mais uma bela cortina de fumaça a diminuir a visibilidade do assalto sofrido pelo primo do homem.
 
Dormiu pessimamente. Do pesadelo se recordava de crianças chorando a pisar em algo gosmento, parecendo piche, mas que bem poderia ser sangue coagulado e ele desesperado no balcão do bar. Ainda na cama ligou para a Delegacia. Pacheco atendeu.


- O senhor não vai acreditar no que o legista nos contou e que a gente nem tinha percebido. Afinal um de barba, outro sem, um de cabelos compridos, o outro parecendo militar. Um cheio de tatuagens nos braços, corpo, até mesmo no pescoço e o outro com pele limpa, um mais gordo e o outro magricela. Pois bem, mesmo sem saber da questão do nascimento comum, de primeira ele reparou que os presuntos eram bem parecidos. Muito mais semelhantes do que seria razoável de se encontrar.

Pediu que a viatura o buscasse em meia hora. Embarcado resolveu passar pela Medicina Legal. Aquela ocorrência estava a cada novo dado mais instigante.

- Veio ver os g
êmeos que se mataram, doutor?

Foi o que lhe disseram logo que saiu do carro. Não respondeu e foi direto ao médico legista. Ele o levou ao morgue e lá estavam, lado a lado
numa sala com uns dez cadáveres, os dois corpos envelopados em sacos de plástico preto. Abertos os fechos Antero comentou.   

- Não vejo esta semelhança que me disseram. Parecem-me bem diferentes.

- Não é porque um está bem mais gordo do que o outro, um cuidado e o outro não, que sejam distintos. Claro que para a ci
ência necessitamos de provas e assim já enviamos amostras dos sangues para análise do DNA, mas vou lhe mostrar pelo menos cinco pontos de extrema semelhança entre eles.

Já no segundo item pôde ver que aquilo fazia bastante sentido.
Guardados naqueles sacos, tivessem tido semelhantes cuidados, as alimentações parecidas e houvessem adotado os mesmos estilos de vida, se estaria diante desses gêmeos idênticos, que poderiam mesmo participar de concursos de parecença. Entre os dentes soltou um palavrão.

- Necessita de mais algum dado, chefe? Já me alertaram
tratar-se de caso bem sensível. Daí que gostaria da sua opinião. Estão aí fora querendo falar comigo mãe e irmã do assaltado. Devo contar ao abrir o saco que, com altíssima probabilidade, assaltante e assaltado eram irmãos? Quem sabe elas não me pedirão para que abra o saco ao lado, querendo conhecer quem está dentro dele?   
  

- Negativo. Não acho que esta seja atribuição para a Polícia. Claro, teremos que dizer para alguém. Nesse caso ao Secretário. Creio tratar-se de missão a ser cumprida por ele.

Sai absorto em mil reflexões e dúvidas. Ao levantar a cabeça reconhece os longos cabelos negros da noite anterior, estão abraçados a uma senhora de meia idade. Acostumado a manter domadas as emoções, não escondeu a surpresa. Sim, era ela. Até no inferno reconheceria aqueles cabelos.   

- O senhor as conhece?

O legista, não só por curiosidade, mas também com indefectível ponta de ironia indaga com discrição, pois era evidente que a força daqueles quatro imponentes e significativos olhos os seguiam. No bolso do paletó sentiu a vibração do telefone. Oportunidade perfeita para escapar da sensação trazida pelos olhares e a questão apresentada. Ligavam desde a Delegacia.

- Sabe da última, doutor? O Secretário de Seguranç
a começou o dia em casa com uns vômitos estranhos. Foi trabalhar e sofreu forte convulsão. Correram com ele para o Pronto Socorro. Não sabemos de mais nada, mas os boatos são de que o homem empacotou. 

- Teremos um dia agitado. Preparem-se.

Foi o que respondeu ao detetive antes de desligar o telefone. Trânsito engarrafado e mandou que fosse acionada a sirene. Costuravam lentamente entre os carros que iam se ajeitando para dar passagem à polícia.

- Sabe que o povo tem má vontade conosco, chefe? Preferem dar passagem para ambulâncias e bombeiros. Pior que a gente só mesmo sedan de luxo com vidro preto e aquela luz estroboscópica, também a gritar, posta em cima pelo motorista, ou segurança de algum figurão. Desses o povo se puder até atrapalha a passagem.

Sorri concordando com o motorista. 

- Sei disso por experiência própria, doutor. Pilotei ambulância antes de ser policial. 

Pelo rádio do carro recebem a confirmação da morte do Secretário. Como das outras vezes em que se depara com algo incompreensível, vira a cabeça para o alto e solta um palavrão.

- Tem dia que é foda, né doutor?

Não responde. Para ajudar a pensar vai tirando a prova dos nove nas placas dos carros que vão ultrapassando. Na cabeça seguem embolados os gêmeos, o secretário e a morena linda.
Já na Delegacia atende a chamada do Delegado Geral.

- Viu só a merda aumentada? Quando saímos daí e me despedia dele, notei que sua cara estava meio pálida e lhe perguntei se estava legal. Disse-me que se sentia enjoado, que ia para casa tomar um banho e descansar um pouco. Bem cedo estava na Secretaria e foi seu assistente, que graças a Deus sempre madruga, quem escutou barulhos estranhos no banheiro dele. Entrou e deu com o homem se debatendo espremido entre o vaso e a pia. Não fosse isso e teria apagado lá mesmo, língua enrolada e sufocado no próprio vômito.

- A orientação dada por ele se mantém?

- Pois é. Estou ligando exatamente por isto. Precisamos conversar e não será pelo telefone. Agora vou dar umas ordens aqui considerando os acontecidos. Vamos nos encontrar naquele café da Dr. Florymond com a Santa Cruz às 10 horas. Além de nunca estar cheio jamais vi por lá um policial e tenho a impressão de que a garçonete, uma velha meio gorda, é surda. Ela nunca entende o que a gente pede.

Caramba, refletiu Antero, a mesma esquina do bar no qual tomara o fora da morena deslumbrante dos cabelos longos, que tão pouco conhecera e que por mais que tentasse afastar dos pensamentos, mais parecia querer se enfiar no interior deles. Foi com algum incômodo e curiosidade que apanhou o taxi. Desconcerto por ter que voltar, tão pouco tempo depois, ao lugar que deliberara não mais frequentar. Curioso para descobrir que raios de café era esse que nunca tinha reparado haver por lá, mesmo que nos horários em que por aquelas bandas andava não eram horas em que os cafés, pelo menos os mais tradicionais, estivessem abertos. Riu ao constatar que seu bar ficava exatamente ao lado do café do seu chefe Petrúcio.

Sentia sede e pediu água com gás. Talvez pela informação de que a mulher parecia surda a voz saiu um tanto alta, fazendo com que o casal de jovens os únicos, além dele e da mulher, por lá àquela hora, se desviassem para ele. Obviamente estavam apaixonados. Davam a impressão de se derramarem um para dentro do outro a partir das expressões embevecidas e que só se modificaram uma vez, por conta da sua voz alta.  Imaginou-se sentado, assim desse jeito mesmo, diante da rainha morena da qual, sem nem saber que nome tinha já era conhecedor do sobrenome. Curtir a noite com ela assim nessa alegria boba que só os mais apaixonados conseguem ter. 

Petrúcio chegou nem cinco minutos se tinham passado. Lançou um olhar geral sobre o salão e aprovou a mesa escolhida por Antero, como se tivesse dúvidas de que se tratasse de um policial competente: Visão ampla do ambiente, de frente para a porta e sem dar as costas para alguma janela. Apreciou mais ainda o fato de o café estar praticamente vazio. Afrouxou com uma careta o nó da gravata enquanto olhava algo bastante curioso na janela que só ele era capaz de enxergar. 

- Mudanças de plano, ou as ordens do falecido se mantêm?

Foi perguntando, voz mais baixa, ao chefe não sem que houvesse naquelas palavras e principalmente no tom no qual foram proferidas, um quê sarcástico. Para bom entendedor e ninguém chegaria ao posto de delegado geral sem ser um, estava ali implícito que mesmo que eles fossem mantidos, ele iria trabalhar, em off, com gente de sua estrita confiança para elucidar aquele mistério. Nem que fosse somente para se deliciar com o prazer da descoberta, que coisa insolúvel dá comichão nas mãos e costuma gerar aflição e insônia em policiais.

Gigante, era esse o apelido malicioso do baixinho Delegado Geral, ao agendar a conversa já tinha claro que o pior a ser feito seria esconder de Antero o que sabia da história, mesmo que não fosse lá grande coisa. Melhor tê-lo como parceiro do que como competidor nessa hora.

- Antero, você já deve saber que o primo do nosso chefe era o líder, na América Latina, da máfia de manipulação de resultados esportivos chinesa. O Secretário lhe oferecia suporte e segurança o que, não sejamos ingênuos, mostra que ele levava o seu quinhão no negócio.

Fazendo que sim com a cabeça, ao mesmo tempo em que se surpreendia com tal revelação, Antero tentava passar aoder a impressão de que aquilo por ele já era por demais conhecido. Ou seja, que aquele era o piso. Que queria saber mais além do que ele lhe tinha confidenciado.

- O problema se deu quando os interesses dos concorrentes, as máfias russa e japonesa, começaram a ser afetados. Parece que alguns juízes, técnicos, goleiros, dirigentes e até beques de times de segunda e terceira linha, sem conseguir avaliar o tamanho do risco em que incorriam, quiseram ser mais malandros ainda auferindo vantagens das duas bandas. Dão a impressão de que não leram a máxima de que não se pode agradar a dois senhores, conforme está registrado na Bíblia. E a partir daí teve início uma guerra. Os primeiros a cair foram esses idiotas que quiseram enganar os chinas, japas e russos. Em seguida, com medo de que estivessem sendo traídos não somente pelos brasileiros e gente de times pequenos dos países vizinhos, mas também por espiões infiltrados em suas falanges, começaram a desconfiar de companheiros e mafioso, sabemos todos, não consegue conviver com a dúvida e muito menos com a desconfiança. 
Esforçando-se para ocultar seu desconhecimento daquilo tudo, pois o que menos desejava nessa hora era se mostrar fraco, Antero começou por rodear o alambrado.

- Sabia das máfias, dos conflitos de interesse e dessa questão da luta cruel entre elas. O que para mim está sendo novidade é que o Secretário também mamava nessas tetas esportivas.

- É briga de cachorro grande e em escala mundial. No Brasil há bastante gente boa envolvida nisso. Tem muito acidente por aí que se você for olhar de bem perto irá reparar que de acidente mesmo não tem nada.

- Inclusive esses vômitos e convulsão do Secretário.

Os dois, parecendo mais relaxados, agora riam.

- Mas, Petrúcio, você me contou uma história. Falou inclusive várias coisas que eu já sabia, mas não me deu nenhuma orientação sobre como proceder com o caso.

- Antero, a casa do Secretário caiu e ele está morto. Só que isto não significa que a gente vá urinar em sua sepultura. Tentaremos preservar a memória do homem, mas tomando cuidado para não sujar nossa reputação na defesa da dele, se é que me entende.

- Doutor, vou ser bem direto. É que como dono do caso preciso saber como deverei agir. Até agora a ordem que possuo é para não descobrir nada. Ela está mantida?

- Ô Delegado, um eventual comando diferente que eu desse, depois de tudo que nós sabemos, iria mesmo impedir que você corresse atrás da verdade escondida por trás dessas histórias?

Antero sorriu alto ao mesmo tempo em que deu duas batidas na mesa, fazendo barulho com o grosso anel do dedo mindinho o que fez com que o casal apaixonado virasse novamente os olhares. 

- Esta conversa me deu fome. Vamos fechar a conta e sair para almoçar. Depois iremos ao enterro do Secretário.

- Não tenha dúvida, Petrúcio, que o meu interesse está muito mais focado em fazer uma visita ao velório do primo dele.

- E acha que não sabia disto? Já me avisaram que os dois estão sendo velados no mesmo cemitério, o que se me fosse perguntado, iria responder que seria algo tremendamente perigoso, mas como ninguém me pediu opinião de nada, fizeram a besteira de deixá-los pertinho um do outro. Só faltou algum sábio haver sugerido, e eles terem aceitado, de enterrarem o gêmeo também junto. Velório triplo de mafiosos.

- Ok, vamos comer e em seguida iremos aos velórios. Tem uma equipe nossa por lá. Será mesmo que eram gêmeos? O legista acha que a probabilidade de o serem é bastante significativa. Vamos ver o que nos dirão os exames. O chato é que só ficarão prontos em dez dias. Caso sejam mesmo univitelinos haverá um mesmo DNA para os dois. 

O que mais desejava era ver a morena dos cabelos longos e olhos escuros, olhar forte capaz de tirá-lo do prumo. A moça bela que sem pedir licença, a cada minuto, dava um jeito de se entranhar na sua mente. Muito mais do que a excitação por conta das novidades na ocorrência da noite passada, o que se sentia impotente para cumprir era deixar de pensar nela.  A diferença é que não pensava mais na linda mulher que o encantara num bar, mas na irmã de um mafioso de muito poder,  pertencente a uma gangue altamente perigosa e que fora assassinado. A encrenca em que se metera tinha mais que dobrado de tamanho.

Era impossível se aproximar da capela onde o corpo do Secretário ia sendo velado. Políticos, autoridades, gente comum, puxa sacos. Antero avaliou nunca haver visto tanta gente para se despedir de um defunto. Já para chorar o primo mafioso não havia tanta gente. Alguns mais chorosos, com toda certeza parentes dele, além de uns tipos que a experiência policial diria que fosse de gente que estivesse ligada a algo que necessitavam esconder. Um bolinho de mulheres que ao ver que dentre elas estavam as duas amigas da noite anterior, conjecturou serem amigas da morena linda e quatro senhoras a rezarem com a mãe do morto, aquela do olhar penetrante, ao lado do caixão. Umas poucas pessoas transitavam entre um velório e outro. Depreendeu que quase ninguém ali era sabedor do parentesco entre os dois. Menos mal.  

Encontrou-se, discretamente, com a equipe que mandara para lá em uma viatura descaracterizada. Como se fossem amigos que há muito não se viam abraçou a detetive. Soube  que haviam filmado e fotografado a todos que tinham passado para chorar o primo assassinado do Secretário. Ao sair teve a nítida impressão de que aqueles dois olhos grandes, bem escuros, o estavam seguindo. Aliás, aqueles olhares pareciam alcançá-lo em dobro, tão forte era a sensação experimentada. Como se tratava ali de local de oração fez uma pequena prece implorando para que estivesse enganado.

No dia seguinte foi com ansiedade que cobrou do seu pessoal a edição do filme e as fotos. Sentia raiva por estar perdendo o controle sobre os sentimentos. Mais do que descobrir gente do mal, o que mais ansiava era assistir filmes e ver fotos da morena. Foi com humor de javali que entrou na salinha, quase um cubículo, com o nome pomposo de Salão de Tecnologia e Projeção. Enquanto os demais comparavam fotos, faziam ilações, levantavam possibilidades, parando a toda hora a projeção para melhor reparar nos rostos presentes ao velório, seus olhos impacientes estavam longe e só se acalmavam quando a viam. Várias vezes ela surgiu deslumbrante na grande tela. Mesmo que aqueles olhos estivessem escondidos sob os óculos, considerou seu rosto divinal. 

- Esta morenona de cabelos longos é a irmã do morto, doutor. Ela é dona de um restaurante japonês e tudo indica que esteja limpa. No entanto essa outra moça, que a rodeou durante toda a tarde, parece ser Lorena Paez de Borquio, salvadorenha, ou mexicana, não se sabe ao certo. Se for mesmo ela será um achado, eis que está metida até a medula no esquema. Nem desconfiávamos que estivesse aqui no Brasil. Mas isto é algo que ainda precisamos checar. A questão é que temos a sua orientação para manter o caso o mais discreto possível. Podemos mandar esses filmes e fotos para a Interpol?

- Ainda não, aguardemos mais um pouco. Você disse restaurante japonês? Onde ele fica? Curto demais a culinária oriental e tenho a impressão que já estive em todos aqui na cidade e arredores. Não se passa uma semana sem que visite um.

- Fica nas Colinas, coisa fina mesmo. Chama-se Kymigaio, o senhor conhece?

Antero assentiu com a cabeça à pergunta da detetive Márcia.

- E o nome dela, qual é?

- Desconfia da dona, doutor? Tem alguma informação pra gente a respeito das movimentações da mana?

Pego no contrapé, Antero teve que optar pelo sim, que aquele rosto lhe parecia bem semelhante ao de uma mulher presente em umas fotos que vira há uns tempos, enviadas pela polícia do Japão. Completou dizendo que iria dar uma vasculhada em seu computador e se houvesse algo interessante passaria a eles.

- Opa, vamos mirar também nela o nosso farol. Seu nome lembra os anjos, doutor. A mocinha se chama Angélica.
Buscou rir, o mais descontraído que pôde, com os demais. Não iria dar bandeira em uma hora dessas. Por dentro um liquidificador de sentimentos girava forte: alegria por saber seu nome, surpresa por ela ser dona do restaurante japonês que tanto frequentara e no qual jamais a vira, um tanto de incômodo pela forma como a detetive a tratara, certo alívio porque não a consideravam suspeita. Orientou o time para que mantivesse sigilo a respeito das informações levantadas e que, por enquanto, não dissessem nada do que já sabiam a alguém que não fosse da Delegacia. Márcia disse-lhe então que havia gente importante curiosa para conhecer aquilo que a 8ª DP havia descoberto sobre o caso.

Sentia-se cansado demais. Fez um rápido inventário mental de tudo que acontecera nas últimas vinte horas. Impressionou-se com a gama de acontecimentos vividos e o quanto alguns deles tinham mexido com seus sentimentos. Estar com aquela mulher maravilhosa como moradora da sua cabeça era prova patente de que deveria cuidar das carências.

Em casa o cansaço deu sinais de crescimento. Jogou o paletó na poltrona e foi avançando, arrancou a gravata azul de pintinhas cinzas, parecendo chuvisco. Desafivelou e tirou o coldre com a arma de sob a axila esquerda. Lá atrás na poltrona o celular gritava no bolso do paletó. O primeiro pensamento foi o de terminar de se despir, deixando-o a cantar como se não o ouvisse. Quando deu por si dava passos apressados na direção dele.

- Delegado Antero Columbiani?

Apesar de haver escutado dela somente três frases lacônicas, todas pontuadas por negativas, aquela voz lhe soava familiar demais. Mesmo assim conseguiu agir como policial.

- Com quem estou falando, por favor?

- Puxa, nem me reconhece mais? Somente porque não quis conversar e dançar com você naquele bar e me trata assim? Quem sabe eu seja uma pitonisa, tivesse já naquela hora a premonição de que uma tragédia familiar se avizinhava e de que teríamos que nos encontrar logo adiante?

Verdadeiramente que se tratava de um dia mais que agitado, um dia bem estranho a provocar sentimentos embaralhados, alguns mesmos aos quais não conseguia nomear com clareza. Mais que a estranheza pelo telefonema incomodava-o o tom daquela voz. Incompatível com o fato de a dona dela ter perdido, em circunstâncias trágicas, o irmão há poucas horas. Ao mesmo tempo, como era gostoso receber aquela ligação, ouvir a voz que aos ouvidos soava como linda canção a afastar para distante os cansaços e problemas.

- Antero, preciso conversar com você, mas obviamente não poderá ser aí e muito menos aqui em casa. Marque um lugar em que possa encontrá-lo. Policiais têm sempre locais apropriados para este fim, não é mesmo?

Sentiu um prazer estranho, envolto em vários receios – evitava a palavra medo. Em um átimo doce vingança irrompeu na mente.

- Poderemos nos encontrar daqui a uma hora no café ao lado do bar onde nos conhecemos.

- Nunca havia estado lá antes, passe-me o endereço. Só vou pedir para que seja trinta minutos mais cedo. Quero aproveitar que mamãe tenha adormecido e que uma amiga vela pelo seu sono. A proposta que faço é de que nos encontremos em meia hora. A conversa será rápida, prometo.

- Acho que não conseguirei chegar em trinta minutos.

Possivelmente me atrase um pouco, estou ainda na Delegacia.

Vestiu-se rapidamente considerando que a mentira contada lhe fornecia alguma segurança. Quando ia recolocar o coldre com a arma sob a axila esquerda, decidiu vestir antes o colete. Despiu-se novamente da camisa. Um pouco mais gordo caminhou dois quarteirões para apanhar um taxi. Andava rápido, pretendia chegar antes. Em vinte minutos estava no destino. Droga, o Café estava com bastante gente. Sorte que a mesa na qual se sentaram, ele e o Delegado Geral, não estava ocupada. Posicionou-se com aquela mesma visão ampla, agora um pouco prejudicada pelas tantas cabeças e corpos à frente. Exato na hora agendada Angélica surgiu olhando para um lado e outro. Um esboço de sorriso surgiu em seus lábios. Conteve-se e levantou um pouco o braço direito para que o visse. Estava esplêndida. Ao contrário do cemitério, os cabelos escorriam livres agora. Vestia jeans, uma camiseta de um azul bem leve e paletó numa cor que não identificava bem, mais escura. Seria isto o que chamam de cinza chumbo? Angélica se maquiara muito levemente, calçando sapatos baixos enfeitados com um laço à frente e riscas finas pretas e brancas. 

- Olá, não disse que iria se atrasar um pouco? Buscava uma mesa quando me surpreendi com o seu braço levantado. Agradeço que tenha chegado antes. Como lhe prometi, serei breve. Estamos os dois bem cansados. Peça capuccino para mim e uma água sem gás. 

Por incrível que pareça, por mais louco que aquilo pudesse ser, eis que tinha total consciência de que o que ela lhe iria dizer só podia ser algo complicado, e que a chance de que saísse dali com a encrenca em que se metera mais aumentada era altíssima, Antero se sentia leve. Deixou-a conduzir a conversa.

- Apesar de que a história seja bem longa, tentarei resumi-la ao máximo. Acho que é um pré-requisito para se ser bom policial, entender as narrativas a partir das entrelinhas. Sim, vocês são treinados para montarem quebra-cabeças. Quanto mais complexos, melhor ainda para serem elucidados. Então, trate de entender o meu.

- Acho que vim aqui para isto. Estou pronto para escutá-la.

- Petrúcio não era meu irmão de verdade. Uma empregada baiana que meus pais tinham à época – eu não era nascida, cheguei sete anos depois – tinha uma filha que engravidara de gêmeos. Uma história triste como tantas outras e que não vem ao caso aqui te fazer chorar por conta dela. Fato é que uma das crianças nascera com diagnóstico complicado e papai, que era médico, sugeriu a Marieta que o trouxesse para ser tratado no hospital em que trabalhava. Presumo que isto tenha sido intencional, com vistas à adoção, porque mamãe não conseguia engravidar. Desembarcou direto para o hospital, foi operado da válvula defeituosa no coração e logo estava ótimo. Petrúcio passou a morar mais com meus pais do que com a avó. Acho que nem tinham se passado dois anos quando Marieta adoeceu. Um câncer desses bem agressivos a levou em poucos meses. O menino então, ao invés de ser devolvido, ganhou o nome do meu pai e foi oficialmente adotado. Seis anos depois aconteceu, o que consideraram como milagre, a gravidez de mamãe e foi então que cheguei. 

Estava claro que Angélica não sabia que era exato o irmão de Petrúcio quem o matara. A língua coçou, mas se conteve.

- Papai sempre teve um amor enorme por meu irmão. Era óbvio que ele gostava muito mais dele. Mesmo assim Petrúcio detestou a minha chegada. Depois de sete anos como o príncipe da casa, aparecia alguém para receber um pouco das honras que só lhe eram devidas até então. Inteligente, pegava as coisas imediatamente, sagaz, entendia de tudo e em todos os assuntos era capaz de dar um palpite no mínimo interessante. Mamãe acha que exagero e que não era bem assim, que meu ciúme desmedido dele não tinha tanta razão de ser, como se o ciúme primeiro não fosse de Petrúcio. Meu analista ponderou que a diferença de idade também prejudicou a nossa mútua aproximação. Bem, este é o retrato que tiro da cena. Afinal, quem sofreu na pele o descaso e a indiferença de Petrúcio fui eu.  Quando papai morreu, ele tinha dezessete e eu dez anos. Naquele tempo éramos como cachorro e gato. Meu desgostar tinha a dimensão praticamente do ódio e o pior, já te disse, é que ele era correspondido.

- Vocês não foram os primeiros e nem serão os últimos irmãos a se odiarem. 

Angélica balançou a cabeça e com as mãos fez sinal de “pois é”.

- Seu sonho, veja só, era ser jogador de futebol, mas o talento não ajudava o que, claro, me fazia vibrar de alegria. Passou a torcer, mas não desse jeito igual a gente, que tem um time do coração e que se encontra nos estádios, ou em frente a uma TV para vibrar e sofrer pelo clube amado. Petrúcio apreciava estudar o futebol, analisar as partidas, fazer gráficos, acompanhar cuidadoso e detalhista as perdas e ganhos que normalmente nem são reparados nos jogos. Ele se emocionava curtindo as grandes partidas e excelentes equipes. Se o futebol fosse bonito não interessava qual time fosse ele estava torcendo. Estudava engenharia, mas nunca se envolveu com o curso. Petrúcio jamais se formou. Lá pelo quinto período, não sabemos bem em que momento, largou tudo. Foi quando começou a ganhar bons dinheiros com o futebol. 

- Como ganhar dinheiro, ele apostava nessa época?

- Não, mas essa sua paixão e a maneira como analisava e discutia os jogos, chamou a atenção de um velho espanhol, vizinho da gente, que era apostador. Meu irmão dava dicas para ele, ganhando um percentual em casos de acerto. Além de profundo estudioso do esporte, o mano era dono de muita sorte. Passado um tempo e tinha se tornado conselheiro de vários apostadores. Daí a entrar diretamente no negócio foi mera questão de tempo. O que, do nosso lado, mamãe e eu reparávamos é que o dinheiro, que após a morte do velho passara a ser bem contado, agora fluía excessivo. Bem antes dos 30 anos vivíamos com um homem rico.

- Caramba, que história. Isto dá filme, Angélica.

Ela pela primeira vez sorriu.

- Tinha absoluta certeza que você sabia meu nome, mas só agora o pronunciou. Os homens são mesmo muito estranhos.

Antero esboçou leve sorriso.

- Por este tempo meu irmão saiu de casa. Mesmo já adultos nossa convivência não era simples e muito menos fácil. Senti-me então aliviada. Foi-se embora, mas antes nos comprou um apartamento na Beira Mar no qual cabiam três do nosso antigo e que já era razoavelmente amplo. Viveu, com a morte de um sócio e de um seu empregado, o começo da experiência do quão perigoso era o seu negócio. Passou a morar em hotéis de luxo e a andar com seguranças. Você sabia que ele nunca dirigiu um carro? Fiz arquitetura e não conseguia emprego na área e mesmo tendo dinheiro a rodo queria ter um trabalho bacana para dar sentido à minha existência. Mamãe pediu para ele ver algo para mim e foi então que ganhei de presente um restaurante.

- Sim, o Kymigaio. Sabe que sou assíduo frequentador dele? Meu azar é que nunca te vi por lá.

- Vou duas, no máximo três vezes por semana e por pouco tempo. Tenho uma gerente excelente, além de amiga. Aliás, você a conheceu. Lembra-se da loura alta e magra que estava comigo no bar, como também no velório de Petrúcio, aquela de cabelos curtos?

Moveu assertivamente a cabeça, desconfiado de que a participação dela naqueles assuntos era maior do que como dona do restaurante japonês.  

- Bem, até aqui falei do passado. No presente quero lhe dizer que me aproximei mais de Petrúcio. Ele precisava de mim e eu não me negava a auxiliá-lo. Só que o presente acabou hoje e não terminou nada bem. Tratemos então de planejar o futuro. 

- Ao começar você me dizia que eu precisaria ler as entrelinhas, que necessitava montar o quebra-cabeças para entender sua história. Acho que entendi praticamente tudo, mas tem uma peça que não consigo encaixar de jeito algum.

- E qual peça seria esta, senhor Delegado?

- Por que está me contando isto tudo? Por que deseja me falar do amanhã? É esta a peça que não consigo encaixar no puzzle.

- São três os meus motivos. O primeiro é que alguém andou espalhando a história de que eu, além de sócia, sou a eventual sucessora do meu irmão. A segunda é que o primeiro motivo foi acionado com a morte dele e isto, não vou negar, me dá medo. Medo que aumenta ainda mais porque não confio nem um pouco nos parceiros de Petrúcio e você, que imagino tenha a visão global do negócio, é sabedor do quanto de dinheiro há rolando nessa parada.

- Pare um pouco e me responda duas questões rápidas. Primeira: quem espalhou tal história? Segunda: de zero a dez, na sua avaliação, qual a possibilidade de que seja verdadeira?

- A respeito da divulgação da história, minhas suspeitas apontam para Petrúcio. A vivência da guerra,we como lhe disse, foi fazendo com que ele, que se considerava imune à morte, passasse a vê-la como possível. A luta entre os grupos, que vocês costumam chamar de cartéis, ou quadrilhas, coroou essa percepção da fragilidade da vida em meu irmão. Viver, ainda mais num jogo como o dele era subir e descer numa montanha russa descontrolada, na qual os parafusos estão soltos ou bambos. Ele avaliou que a definição de um sucessor natural, ainda mais sendo alguém vindo do círculo mais íntimo do líder, era fator de estabilidade para o negócio.
Angélica faz silêncio após responder. Sem conseguir esconder sua angústia e aflição, Antero perguntou   
 
.
- E daí? Você só cantou a primeira parte da resposta.

- Cantou, Delegado?

- Desculpa pelo ato falho. Cantou no jargão policial significa o mesmo que revelou o que tinha sido perguntado em um interrogatório.

- Deselegante, não acha?

- Muito. Por isto o pedido de perdão.

- Tudo bem, Antero. E com o perdão lhe devolvo a pergunta: Deseja mesmo saber quanto de zero a dez a história tende à realidade? Confesso, já que você sugeriu ser este um interrogatório, que a minha preferência é a de responder a essa questão com o meu terceiro motivo.

- Reparo que estamos em meio a um jogo. Tem consciência de que eles podem ser perigosos, menina?

- Não gosto de ser chamada de menina. Se não quiser pronunciar meu nome, chame-me de mulher então. Sim, tenho plena consciência dos riscos. Aliás, vivo neles desde que nasci. Aprecio a adrenalina. Acha que é fácil estar jogando aqui com você no dia em que enterrei o meu irmão?

- Mas você mesma me havia dito que tinha, desde a infância, bastantes dificuldades com ele e pensando bem ele não era seu irmão de fato.

- Ao definirem família os antigos gostavam de usar a imagem do sangue. Diziam ser ele bem mais denso do que a água. Sim, nas veias não possuíamos o mesmo sangue a correr, mas lembre-se de que há irmãos que foram assumidos por escolha e acho que aqui posso usar a imagem do batismo, que é feito pela água, trata-se do caso de Petrúcio. Importa que a opção tenha sido realizada pelos meus pais, acolhendo-o como filho. Isto para mim é mais do que o bastante para tê-lo como irmão. E também já lhe disse que não tenho negado auxílio a ele. Irmãos se apoiam, se ajudam, se suportam, Antero. 

- Paremos com os rodeios. Faça logo a sua jogada.

- Quer mesmo? Cuidado, pois que tendo a te colocar em cheque. Sim, Antero, em cheque mate.

- Você me conhece bem pouco, Angélica. Temos em comum o gosto pelo risco. Não fora ele jamais seria policial.

- Serei direta. Os acontecidos precipitaram a necessidade de eu ter ao lado alguém forte e totalmente confiável como parceiro. Houvesse ainda, pelo menos, o meu primo, poderia aguardar um pouco para a tomada dessa decisão, mas ele também foi eliminado hoje. Estou desprotegida, vulnerável, Antero.

- Desprotegida, vulnerável? Vocês têm uma rede, uma teia imensa, uma comunidade protetora fortíssima.

- Seria muito bom e fácil caso as coisas funcionassem simples assim. Vou lhe revelar algo que tenho certeza de que não sabe. Hoje pela manhã, ao nos encontrarmos na Medicina Legal, mamãe teve uma visão ao reparar nas cores e consistência de sua aura. Disse-me que nela se encontravam as marcas e sinais a indicarem que eu deveria me aproximar de você. Não me olhe assim desse jeito. Mamãe tem dessas coisas. Sabia que há três dias ela chorava o assassinato de Petrúcio? Implorou a ele para que passasse um tempo escondido fora do país. Via que aquele que fora enviado para eliminá-lo se encontrava próximo. A única coisa que não se encaixa – também tenho problemas com os meus legos – é que ela enxergava a cena trágica como se fora num espelho. Meu irmão era morto por ele mesmo e também o matava. Pode haver algo mais absurdo?

- Estou tratando com coisas que não consigo compreender bem e estar em meio a algo assim nebuloso me deixa um tanto confuso.

- Recorda-se do que lhe disse quando liguei chamando-o para essa conversa? Que quem sabe eu fosse uma pitonisa? Pois é. Quando mamãe me falou da sua aura, ela só referendava aquilo que eu estava vendo. Compreendeu agora a peça que não se encaixava?

Antero se remexia na cadeira, como se em aflita tentativa para se libertar do fio invisível de um carretel que, lentamente, o ia envolvendo. Era como se precisasse enfrentar aquele novelo a se formar em volta do corpo, mas se sentisse débil demais para lutar contra ele. Sentia a liberdade, pouco a pouco, sendo tomada. Vivenciava mesmo um torpor como se houvesse entrado em alguma caverna encantada. Lembrou-se do café deixado há tempos à sua frente e o levou aos lábios. Bebida fria em lábios gelados, constatou.

- Houve um momento no velório em que mamãe me chamou à beira do caixão e me confidenciou que você estava presente por lá, que sua aura se ampliava por todo o ambiente e que os anjos lhe reforçavam tudo o que já havia me dito. Fique tranquilo, querido. Ela não vê mortes em nosso futuro.

- Em nosso futuro? Opa, que agora você forçou a barra.

- Diria que não são somente os policiais que cometem atos falhos. Só acho que deva considerar a hipótese de que alguns de falhos mesmos não possuem praticamente nada. 

Antero Columbiani, tão forte e seguro de si, sentia-se débil, preso, enredado em poderosas redes. Assim mesmo não se dava por vencido e fez desesperada tentativa para escapar. 

- Também sou dono de novidades. Sua mãe não se enganou quanto ao espelho? Quem matou Petrúcio, e por ele também acabou morto, foi seu irmão gêmeo. Aquele que ficou com a mãe de útero na Bahia. Ainda não temos os resultados dos exames de DNA, mas considerando o que agora me disse, somado ao que o médico avaliou, arrisco-me a dizer que sua mãe está coberta de razão.

Angélica não acolheu o golpe. Replicou.

- E acha que mamãe devagar não foi percebendo isto? Ela até mesmo conseguiu reencontrar a filha de Marieta na Bahia. Alertou-a de que uma tragédia em breve as iria unir. A mulher lhe perguntou o que aconteceria e mamãe solicitou que aguardasse, eis que as duas não tinham mais como mudar os destinos dos filhos. Depois de voltarmos do enterro ela, que esperava pelo desfecho da desgraça há três dias, sentia-se extenuada. Disse que iria se deitar, que combinara com uma amiga para que lhe fizesse companhia, pois que sua filha tinha uma visita importante a fazer ainda nesse dia fatídico. E como se eu fora ainda uma menininha, mamãe me ordenou que o procurasse e o convencesse, aliás, que o trouxesse para ser meu sócio e protetor.

- Meu Deus do céu. Então eu não tenho escolha?

- Da mesma maneira que mamãe não teve como impedir o fim de Petrúcio, eu sinto – e tenho a convicção de que ela também vê dessa forma - que ninguém nessa terra possui o poder de atrapalhar a sua vinda para o nosso lado. “Game is over”. As peças foram todas encaixadas, Antero.

Totalmente rendido ele olhava mais que embevecido, encantado, para aqueles olhos negros, grandes, tão belos. Aguardava ordens. 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 25/10/2016
Alterado em 25/10/2016


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras