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AS VELHAS
- A senhora quer passar também no supermercado, ou só estamos indo até à padaria?
- Você pergunta demais, Odete. Fará alguma diferença se a gente for a um ou a dois lugares? Estou pensando ainda. Sigamos no que eu te disse quando me aprontava para sair. Ou essa cabecinha oca de carapinha branca já se esqueceu?
- Claro que me lembro, dona Isaura. E acho que faz diferença sim. Sabendo os locais nos quais a senhora tem necessidade de ir, posso até pensar num trajeto menor.
- E quem foi que disse que quero caminhar pouco? Sim, passaremos no supermercado. Quero comprar duas latas de leite em pó para as criancinhas da creche. Só porque estamos idosas você fica com essas ideias de que eu não queira andar. Acha que minhas pernas não aguentam? Pois elas são mais fortes que as suas.
- Ideias que tenho são outras. O tempo foi passando e elas ganharam em mim um jeito de lembranças. Fico me recordando de tanta coisa do passado...
- E pare de ficar pensando bobagem, mulher, você pensa demais, Odete. De pensar morreu um burro, costumam dizer. Lembranças são retratos que a gente olha, sorri e depois coloca de novo nas gavetas. Será que o preço do leite subiu de novo? Está ficando pela hora da morte.
- Se conseguisse ao menos guardar, dona Isaura. Mas são coisas que surgem de uma vez na cabeça e ficam rodeando dentro dela, igual redemoinho no meio do pasto. A cada volta levanta a sujeira do chão. A senhora tem alegrias nas lembranças. Das minhas só me chegam lágrimas.
- Lá vem você de novo com a história da criança. Foi Deus quem quis daquele jeito. Já te dissemos isto mil vezes. Acha que vai me colocar culpa? Ah, você se engana demais.
- Quando Tininho começou a ter as febres pedi para que o levassem ao doutor, mas era dia de festa, aniversário da senhora, e ele foi ficando abandonado.
- Não vá me dizer agora que não ia ao quartinho para olhá-lo? Várias vezes em que a gente foi te procurar e lá estava você cuidando dele.
- Ia e voltava correndo numa aflição danada, igual a de quem busca fogo. Tininho molhado de suor e nem dar um banho nele, fazer um chá, eu pude. Mais uma semana e seria o dia do seu primeiro aninho.
- Com a festa toda programada, com um tanto de gente convidada, como queria que eu fizesse? Que te dispensasse para cuidar do menino? E as suas obrigações, Odete?
- Responsabilidade foi tanta que Tininho virou anjinho.
- Responsabilidade? Se existe uma palavra que você deveria ser proibida de falar é esta. Ser responsável é outra coisa. Responsáveis foram mamãe e papai que cuidaram de você. Responsável sou eu que te carrego pela vida e você não é nada leve, Odete.
- Quem está trazendo a senhora para as compras sou eu. Quem carrega quem se é a senhora que segura no meu braço? O problema é que perdi a maior parte das forças que possuia no passado. Não é porque eu seja seis anos mais nova que também não seja velha. Já completei meus setenta e sete.
- Essa mania idiota de me relembrar que sou a mais idosa me irrita profundamente. E além do mais veja se se enxerga. Você está muito mais acabada do que eu. Uma decrépita.
- Ei, dona Isaura, se pelo menos tivesse tido condições de comprar um pouco só dos seus cremes e remédios para cuidar melhor de mim, seria agora uma coroa enxuta.
- Coroa enxuta? Nada disto, uma velha seca que só tem pele e ossos. E não venha de novo nessas insinuações de me botar remorsos por não ter tido berço, por ser pobre, por ter perdido o filho. Lugar de reclamar é na Igreja do bispo e não comigo, entendeu?
- Sou pobre com a graça de Deus. E perdi a esperança de alcançar existência melhor. Da senhora e de sua família não consigo esperar mais nada. Vida boa e tranquila só no céu. E se tiver.
- Ainda tem a desfaçatez de duvidar da recompensa celeste. O que te serviram os milhares de missas que foi conosco, Odete? E os terços todos que rezamos? Não desejo estar ao seu lado quando tiver que prestar contas dessa sua pouca crença em Deus.
- Acredito que Ele é bom e o que mais terá de mim será misericórdia. A senhora se lembra do Padre José? Pois em toda confissão ele me repetia que Deus é sempre bom e que Ele só sabe ser misericordioso com a gente, principalmente os mais pobres.
- Mais devagar, Odete. Parece que está com o pai na forca. Esqueceu-se de que nem pai conheceu? Para que dar esses passos tão rápidos?
- Não estou seguindo ligeiro, dona Isaura. Vou até num jeito mais lento do que costumamos caminhar.
- Além de me puxar dessa forma, parecendo que quer me jogar ao chão, ainda é respondona. Será que a idade não te ajuda a, pelo menos, ter mais respeito com seus superiores?
- Sempre sou tão cuidadosa. A senhora é que cismou que estou indo depressa.
- Nessas horas é que acho que minha mãe, tão boa, não castigou você o suficiente para que aprendesse a se comportar.
- Que Deus a tenha, mas é pura verdade que Dona Nicota não foi nem um pouco boa patroa para mim.
- Como essa boca suja ousa expressar palavras tão brutas a respeito da minha santinha, ainda mais que a coitadinha nem mais pode se defender!
- Desculpas, Dona Isaura, não quis magoar a senhora e muito menos a falecida Dona Nicota. Nem sei como disse tais palavras. Saíram assim sem pensar, de uma vez.
- Não precisa falar alto. Quer que todo mundo da rua escute a sua pouca educação? Agora deu para isto. Levantar a voz para mim. O que teria sido de você, Odete, caso papai não houvesse te tirado do orfanato? Estaria levando uma vida desgraçada. Possivelmente nem teria sobrevivido, pois que eles descobriram depois que você possuia saúde bem frágil. Teria morrido e nem haveria ninguém para ao menos pagar o seu enterro.
- Devo demais à família da senhora. Só mesmo Papai do Céu poderá pagar tudo que fizeram por mim. Perdão de novo, dona Isaura.
- Um dia bonito assim e você nessas conversas chatas. Mamãe me contou que se arrependia de ter te mandado à escola. Mesmo ela tendo notado que aquilo não estava te fazendo bem, que você estava ficando cheia de manias, ainda teve a caridade de deixar que ficasse até terminar o ano. Concordo com ela e digo mais ainda: Esse estrago que a escola te fez perdura até hoje.
- Ela disse isso assim se lamentando arrependida, Dona Isaura? Queria ter permanecido pelo menos mais um ano para entender melhor as letras dos jornais e livros, mas a sua mãe me disse que necessitava de mim na cozinha. Aprendi a bordar meu nome e somente mais umas coisinhas.
- E tem a audácia de me perguntar se mamãe disse isto! Está me chamando de mentirosa, sua insolente?
- Jeito de dizer, dona Isaura. Melhor eu permanecer calada. A senhora hoje está muito nervosa e impaciente. Vamos mudar de assunto. Dia bonito mesmo, mas esse sol assim forte parece que é daqueles que anunciam tempestades, não acha?
- E queria que estivesse calma, Odete? Não anda comigo, mas quer correr. Mulher dessa idade e nem educação tem. Era para eu ficar com paciência, sua negrinha mal agradecida?
- De vez em quando vejo um moço distinto e bonito e fico imaginando se o meu Tininho não teria sido assim todo elegante, como aquele homem de terno que vem vindo.
- Não vejo nem beleza e muito menos elegância alguma nesse crioulo.
- Vamos aproveitar que não vem nenhum carro e atravessar até o meio da avenida, Dona Isaura. Iremos beirando o canal. Para a nossa segurança tente andar um pouco mais rápido para a travessia.
- Ai, está me puxando de novo, Odete. Tudo bem, apesar de que não gosto de seguir por lá, mas os tempos estão mudados, empregada é quem está dando as ordens para a patroa, preta mandando em branca. Não se recorda de que tenho receios de sofrer uma tontura, ter um tropeço, algo assim e despencarmos lá para o fundo? Sabe que não sei nadar, não é? Você, pretinha, deve saber. Papai gostava de contar que os negros são iguais girinos, nadam muito bem, afinal os crioulinhos começam a existir é dentro da água.
- Eu morro de medo da água, Dona Isaura. Nunca aprendi a nadar. Esta foi diversão que jamais tive. Caminhar com a senhora nessa manhã, a conversa que vamos tendo, estou começando a concordar que sou uma mulher pensadeira. A cabeça ferve e derrama pensamentos pelas beiradas, igualzinho que eu estivesse com leite esquecido no fogo.
- Não sigamos tão perto do canal, Odete. Tome jeito, parece que está bêbada. Fica andando meio de lado e faz com que eu chegue mais para perto da beirada.
- Que é isto, dona Isaura, estou seguindo reto, ando bem em frente e a senhora não está assim tão próxima do canal. É para sua proteção. Melhor ficar desse lado do que da banda de cá, onde tem o perigo dos carros.
- Ah, sua nega besta. Toma mais atenção. Dá a impressão que está me empurrando? Não largue meu braço, sua tonta, mais cuidado comigo, me segure. Ai, meu Deus, estou caindo.
- Socorro! Pelo sangue sagrado de Jesus, me acudam aqui! Minha patroa começou a ficar tonta e caiu no canal! Socorro! Alguém nos ajude!
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 17/12/2016
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