Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


BICHOS E JOGADORES

O estádio já estava escuro, praticamente vazio, quando fomos embora. Éramos a cara da vergonha. Caminhávamos pelas ruas escutando os babacas torcedores do Ginástico cantando, gritando, soltando fogos na comemoração da nossa desgraça. Mesmo tendo passado por eles envergando a camisa gloriosa do Cometa não mexeram conosco. Caso tivessem feito, um, dois, dez teriam sido mortos. Não teríamos deixado nenhum vivo. Tínhamos sido rebaixados para a Segunda Divisão. Nossa ira tinha o tamanho do mundo.

Primeiro mês de luto cerrado, praticamente sem sair do quarto. Quinze dias passados e mamãe me trouxe o aviso do gerente da loja. Dizia que não mais precisava aparecer por lá, que fosse direto ao DP para a rescisão. E raciocinei: não é mais azar, emprego se arruma outro até melhor. Disso a velha desacreditava resmungando pelos cantos, que era um absurdo alguém perder o trabalho em tempos de crise e, ainda mais, por conta de futebol. E se lamuriava falando do que pressentia e de verdade ocorreu: da minha volta, por conta daquele que considerava como estranho luto, à dependência da pensão herdada de papai. Como se não considerasse que tenho direitos nos dinheiros do coroa e que grave era ela gastar da grana dele com namorados.

Noites tenebrosas nas quais tanto avaliei dar fim de tudo. Mas, de que adiantaria morrer se esses vermes se manteriam vivos e sem punição? A ira tremenda me exigia a vingança libertadora do luto. Nos primeiros meses pensei que meu ódio pelos causadores da derrota: Bicudo e Silvano, fosse pouco a pouco sendo domesticado. Na realidade ocorria exatamente o contrário.

Seis meses passados e ele estava crescendo, virava monstro, se tornava ainda mais selvagem. Mais um pouco e tinha transbordado de dentro de mim. Saiu da cama, esparramou-se pelo chão do quarto, escalou paredes, até que, gosmento, escorregou por sob a porta num sutil convite a que partisse. Aquele luto, aquela ira só seriam aplacados pela ação, por vingança. Os minuciosos planos, elaborados no desespero de tantas noites tenebrosas, breve iriam ser executados.

Tinha tido tempo para pesquisar a vida da dupla imunda, indigna de vestir o nosso manto e que nos levara à derrocada. Jogaram o time no fundo do poço e era fundamental que pagassem pelo descompromisso e descuidado com o Cometa. Mamãe, meio a contragosto, bordou para mim um lacinho roxo de luto. Peguei com ela, mais a contragosto ainda, a grana para os gastos com as duas viagens e parti. Dinheiro no fim e peguei até carona em caminhão, consciente de que se necessário fosse teria buscado apoio com a nossa torcida organizada, os gloriosos Cometas de Guerra. Na mente a certeza maior de que só a vingança seria capaz de aplacar o luto.

No Rio fui em busca de Bicudo. Amante de passarinhos, possuidor, daí o seu apelido, de um famoso pássaro dessa espécie. Há alguns meses a imprensa noticiara que ele havia recusado um apartamento nele. A aproximação foi simples. Fiz amizade com os porteiros do condomínio e pedi que me informassem caso algum morador necessitasse de trabalho. Que fazia de tudo, desde capina, até limpar fossa. Não se passaram nem dois dias e me avisaram que uma senhora precisava de jardineiro. Menti que havia trabalhado nisso e lá estava eu em seu gramado. A sorte era amiga e dos jardins da dona podia ouvir a cantoria dos pássaros de Bicudo na casa ao lado. Esperei que saísse com a mulher em seu carro bonito e novo, comprado com nosso dinheiro suado e cuidadoso saltei a cerca viva. Agulha comprida na mão pronta para cegar o pássaro afamado. Manso demais, ao meu estalar de dedo ele se aproximou do chão da gaiola facilitando tudo.

Mas não estava acabado, precisava entrar no palacete. Atirei um pesado vaso de plantas no vidrão que dava para a piscina e estilhaços voaram. Dei uma volta pela mansão e aí a revolta cresceu mais ainda. Não havia nada que recordasse o ano dele conosco. Nem um detalhe que lembrasse o Cometa encontrei por lá. Vi então o aquário com uns dez ou doze peixes coloridos nadando dentro. Esvaziei-o pela metade, para que pudesse carregá-lo e levei-o até à cozinha. Deitei-o na trempe do fogão, acendendo ao máximo o fogo. Fugi então. Ao passar pela portaria me perguntaram se havia acabado o serviço. Dei a desculpa de que tinha esquecido algo importante e que em uma hora retornaria. Saí rápido levando na sacola os apetrechos e a roupa de gato pronta para ser usada na outra visita. Apesar das pernas pedirem uma corrida, só fui apressado para não levantar alguma suspeita.

Praia eu só vi dos ônibus, mas mar para quê? A vingança era bem melhor, me libertava da ira e consequentemente do luto, fazia-me leve. Missão cumprida e lá estava eu na rodoviária Novo Rio comprando passagem no primeiro ônibus para São Paulo. Cheguei ainda na madrugada de uma sexta-feira para a visita ao apartamento do atacante Silvano. Atleta contratado para fazer gols para o Cometa, mas que só tinha nos presenteado com descasos e falta de compromisso com a equipe.

Numa feira no Centro adquiri um uniforme, nojento de sujo, da empresa de distribuição de gás. Tremenda muvuca que passava a impressão de vender só produtos afanados. Por lá perambulavam viciados em crack, pés de chinelo e demais desclassificados da sociedade.

Mamão com açúcar entrar no edifício. História inventada de inspeção de rotina para verificar vazamentos nas instalações da garagem. Dei um tempo por lá e rapidamente tomei o elevador de serviço. Mesmo sabendo que Silvano, separado da mulher, tinha viajado para o final de semana, por segurança toquei a campainha e o único som que retornou lá de dentro foi o latido de Bolinha. Com uma alavanca forcei a porta dos fundos e entrei. O cão ansioso por carinho, bocão aberto e rabinho balançando alegre no chão, e o bichano, de nome Coronel, dormindo indiferente a tudo que se passava à volta, em cima da máquina de lavar. Peguei-o e facilmente pude vesti-lo com a roupa de gato, espécie de camisa recheada, feita com bombas suficientes para estourar caixa automático de banco. Fechei o gato dentro da máquina de lavar para que explodisse com tudo.

A raiva crescia e então decidi dar um trato também no cachorrinho de luxo que, tal como Coronel, parecia ser mais amado que os filhos do salafrário idiota. Ainda na área de serviços, além da comida e água para sábado e domingo, havia algo que vinha a calhar: aquele freezer parecia que me esperava. Um desses bem grandes, horizontais, que as cozinhas dos restaurantes têm para encher de carne, peixes e outros congelados.

Tirei tudo. Parecia haver mais de um boi dentro. Acho que o sacana preparava um churrasco para a cidade de São Paulo inteira. Aquela carne toda do lado de fora e urinei nela. Lá dentro larguei Bolinha. O bicho, não sei se por causa do calor do dia, se porque estava apavorado, ou mesmo que fosse burro tal qual o dono, nem reclamou. Antes de partir regulei a temperatura para que congelasse mais rápido e intensamente. Desci as escadas do prédio aos saltos.

Passando pela portaria, coração aos pulos, disse que estava tudo correto com o gás. Duas esquinas à frente e fiz sinal para um ônibus, sem nem imaginar de onde vinha e para aonde estava indo. Deixei que rodasse bastante e então me orientei com o trocador a respeito do trajeto para se chegar à Rodoviária do Tietê. Ao reparar na Igrejinha aberta entrei e sobre o altar da Santa rezei depositando o laço. Já na rodoviária tomei um banho largando no lixo aquela roupa imunda e fedorenta.

E aqui vou eu de volta para casa. Relembrança feliz da vingança libertadora do luto que imaginei eterno. O Cometa, através de mim, havia aprontado terror em cima daqueles que, por incompetência e desleixo, nos tinham levado a visitar os estádios de fim de mundo da Segunda Divisão.

Vingança realizada e nem um bicho sacrificado. Importava era criar medo, tirar o sono, lançar para longe a tranquilidade, gerar desconforto, aumentar o nível de aflição, instaurar o caos, implantar enfim o terror. Mais que fazer escorrer o sangue, deixar sugerido que isto possa acontecer é algo poderoso. Tal insinuação faz com que ele gele nas veias.

No poleiro o bicudo canta enquanto ao fundo da gaiola a agulha fere fundo o olho do passarinho de pano. O freezer, mesmo que regulado ao máximo, fora desligado da tomada. Folhas de jornal dobrado a evitar que a tampa se fechasse toda, matando Bolinha por falta de ar. As bombas vestindo o gato com um despertador desses de camelô, só que sem pilhas e dispositivo de acionamento. A trempe do fogão sobre a qual ficou o aquário era a única apagada.

Meu time vingado, o luto cumprido. Agora estamos prontos para enfrentar novamente a Primeira Divisão. Seremos, com certeza, campeões e que esses malditos nunca mais passem nem pelas vizinhanças do nosso estádio.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 02/01/2017
Alterado em 22/03/2017


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