Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

FIDELIDADE CANINA

A custo me contive quando você desceu do carro naquele dia. Parecia tonto, tropeçou e saiu capengando. Vê-lo daquele jeito me provocou risos. Fato é que você entrou em minha vida de uma forma bem esquisita. Interessante como a vida se esmera em nos pregar peças. Aquele que chegou todo torto e desequilibrado, passado um tempo tinha se tornado meu par, amigo, namorado e marido.

Reconstruindo a história tenho a convicção de que a gente não se escolheu. Nosso relacionamento se deu como fruto do acaso. Mas será que os demais casos de amor são feitos de escolhas? Ou é o fortuito, o fato de se estar num determinado lugar, naquele exato instante, que faz com que tudo aconteça, ou não, em nossas existências?

Espera lá. Não estamos aqui para filosofar. Trilhar tal caminho acabará por levar para longe o objetivo da conversa. O que desejo - e você me faça o favor de não fugir - é tratar de situações bem concretas, de fatos, coisas palpáveis. Necessito falar da nossa relação, esse caso estranho feito com tijolos de amor assentados por argamassa de ira. Brigamos tanto, será que nossa união tem jeito?

Exemplo de ódio você quer saber? Um bem recente então. Lembra-se ontem no elevador quando aquela sirigaita do 801 descia conosco? Ela, toda serelepe, foi se jogando pra cima de você. Fechei a fuça e a encarei. Ela então recuou se fazendo de desentendida. Não fosse isto e a cadela, sem dúvida, teria avançado.

Diz que eu ia fazer cena atoa, que iria te envergonhar, pois que ela nem te olhava? Você com essa cara de boi zonzo é que não nota como essas sirigaitas ficam se jogando no colo de qualquer um que apareça na frente delas. O mundo carece de respeito. Vejo isto a toda hora e este fato, apesar de nem ter percebido, me deixou furiosa, vive acontecendo. Calma, meu bem. Não te chamei de qualquer um. Modo de dizer. Você não é qualquer um. Nunca foi. Você é especial. O meu número um. Não é assim que gosta que te chame? Meu número um fofinho.

Você se lembra daquela mulher que desfilou numa Escola de Samba portando uma coleira no pescoço gravada com o nome do maridão? Benzinho, não que aprecie coleiras, mas por você seria capaz de sair por aí com uma escrita em letras bem grandes: “Pertenço ao Número Um”. Não precisa nada disso? Sei bem, meu amor, você e sua dificuldade de humor. Calma, não resmungue com esse jeito de querer briga. É brincadeira, afinal basta que saibamos que somos um do outro. A humanidade não precisa conhecer o nosso caso de amor.

Um ser do outro significa a inexistência de espaço vazio entre mim e você. Um do outro é igual a sermos fiéis. Não a fidelidade relativizada dessa sociedade permissiva. Para mim, meu amor, fidelidade é absoluta. Por isto precisa ser seguido do adjetivo canina. Fidelidade canina entendeu?

Sim, eu sei. No início te esnobei. Claro que não poderia ser de outro jeito. Chegou todo esdrúxulo quase beijando o chão. Apareceu-me assim a provocar risadas do grotesco que passava. Amorzinho, você acha que era para me encantar, sentir-me mesma apaixonada por tal ser que surge de jeito tão atabalhoado? Você para mim nada mais era do que o estranho parecendo ter tomado todas ao descer daquele automóvel.

Está me escutando? Sinto tanta raiva quando fica mirando desse jeito o horizonte, como um predador a enxergar, lá bem longe, alguma presa. Por favor, enquanto falo me mire nos olhos. Afinal estamos tratando da nossa relação e se trata de algo importante. Já pensou que ao final dessa conversa teremos definido se continuaremos juntos, ou se cada um partirá para o seu lado?

O quê? Então acha que me faço dramática? Que é óbvio que permaneceremos unidos? Que este é o nosso destino e que mesmo que não tenhamos coleiras e correntes, estaremos ligados por toda a eternidade? Não é bem assim, meu lindo. Pois saiba que para estar com você, e para que dure, tenho cá as minhas exigências.

Ah, então no começo também me via como uma dondoca fútil? Alguém somente preocupada com a aparência? Por que não disse isto naquele tempo? Eu o teria odiado já no começo e nada entre nós teria ocorrido. A existência poderia ter se dado de maneira mais simples e fácil para os dois. Não teria havido perda de tempo. E mais livres, quem sabe, teríamos sido até mais felizes.

Não é isto que quis dizer? Que me ama e que esta foi apenas a impressão primeira, da mesma forma que a minha de você foi também negativa? Está bem, não vou ficar relembrando mais a maneira como o conheci, desculpas. Mas que foi bem gozada, digna de comédia pastelão, ela foi.

É feliz demais e nenhuma outra situação seria capaz de dar ao menos um pedaço da felicidade que sente comigo? Gostoso demais de escutar essas palavras. Merece mil beijos. Poético você comparar o nosso caso com o frio invernal a esperar pela chegada da primavera e que debaixo das cinzas do nosso amor há fogo oculto. Carvão que necessita só de um pouco de sopro para se tornar vermelho.

Dizer que me ama e, ainda mais, me olhando assim no fundo dos olhos, me faz derreter toda. Nota como fico trêmula? Esse seu jeito me deixa boboca. Fico mesma com dificuldades de me expressar direito. Eu também te amo demais. Viu como é necessário a gente conversar de vez em quando? Colocar em pratos limpos aqueles senões, as poeiras que vamos empurrando para debaixo do tapete da rotina?

Tudo agora está claro. Estou ainda mais apaixonada. Olha, está chegando o tempo do meu cio e parece que nossos donos não gostam de filhotes. Deve ser por conta disto que eles não têm bebês e assim, para que não houvesse crianças por aqui, foi que nos separaram quando estive fértil. Então, mesmo sabendo que seja tarefa difícil, farei esforços para esconder meu estado. E você terá que me ajudar. Não faz ideia do que terá que fazer? Coisa mais simples, mas simplicidade jamais quer dizer que será fácil.

O que precisarei é que seja discreto. Isto significa que estará proibido de me dar lambidas, cheiradas sensuais e muito menos permanecer com essa bocarra bonita, e que adoro, toda aberta e babante diante de mim. Desse jeito a gente acaba dando bandeira e lá irão os humanos novamente a nos separar. Olha, meu amor, combinemos o seguinte: Só cruzaremos quando a casa estiver vazia. Caso o desejo aconteça e eles estiverem presentes teremos paciência, esperaremos que durmam e então, só nós dois, realizaremos a festa.

Conto escrito para o desafio dos CONTORCIONISTAS com o tema discutindo a relação. 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 08/02/2017


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras