ENVELOPE PARDO
O envelope pardo provocou a escalada do medo. Dentro as fotografias: a sala de televisão e os lugares onde costumavam se assentar marcados com as respectivas iniciais da mulher e filhas. Na sua poltrona uma cruz somente. O motivo da outra era o berço, urso e coelhinho de bruços, tendo entre eles, formada com letras recortadas de jornais, a palavra cuidado. O chuveiro aberto no banheiro da suíte era tema da última foto. O remetente oculto provava competência na arte de aterrorizar.
Chegou em meio às correspondências deixadas por Dona Eneida ao término do expediente. A Secretária lhe afirmando que viera, como tudo mais, da Secretaria Geral e como havia o carimbo de “Confidencial” não fora aberto. Sebastião, cara de entediado, subiu para lhe afiançar ser impossível saber quem o enviara. Os cinquenta e dois escaninhos eram alimentados por um exército de offices boys, um tanto deles oriundos dos demais ministérios e repartições da Esplanada. Fosse só isto, mas não era raro que gente de fora, infringindo regras, ultrapassasse o balcão do protocolo metendo algo num daqueles quadrados. Dona Eneida telefonou para Gilbert, coordenador da Segurança, para que pesquisasse nas câmera próxima quem largara o tal envelope pardo. Nem dois minutos tinham se passado quando o delegado aposentado retornou para dizer que ela estava inoperante, mas que iria ser consertada na próxima semana.
No cafezinho, Dona Eneida e Sebastião conjecturavam. As imaginações voavam criativamente no que poderia conter aquele envelope. Dentre as possibilidades trazidas à baila, concordavam com aquela a dizer que chantageavam Dr. Fabrício. Que tinham enviado fotos tiradas dentro de algum motel para pedir resgate. “Dr. Fabrício cuidando da solidão de alguma esposa de gente importante no governo”. Lá em baixo, num canto da garagem do prédio, no interior de uma sala do pessoal da Segurança, Gilbert também nivelava sua turma a respeito daquele tal envelope pardo. As possibilidades sugeridas do que havia dentro dele eram praticamente as mesmas.
Nem seis meses tinham se passado desde a posse e se via metido numa encrenca descomunal. Logo ele que nunca se envolvera em política e que era dono de uma carreira bonita na iniciativa privada. “Arrependimento não mata, pois que se matasse eu estaria enterrado”, disse umas três vezes para a mulher e umas mil para si mesmo.
Durante a campanha o nome de Hermes Evaldo Torrealba, primo do seu amigo Antônio Carlos, constava em todas as listas que especulavam sobre possíveis nomes para o ministério, caso o partido vencesse as eleições. Ainda comemoravam a vitória quando HET, assim o chamam e com quem conversara umas três ou quatro vezes na casa de Tonhão lhe telefonou. Pedindo sigilo lhe disse para que aguardasse pois que necessitava de alguém de provada competência e perfil técnico, seu perfil exato, para uma posição chave na equipe. Logo após Tonhão ligava contando que o primo lhe havia procurado dizendo ter ficado muito bem impressionado com ele, querendo saber um pouco mais sobre Fabrício. “Eu também estarei no time. Aguarde contato dele”, terminou.
Passada aquela euforia, foi se dando conta das vias transversas, os meandros escuros por aonde passavam os processos. Pouco a pouco tomava ciência dos variados esquemas lá existentes. Solicitou uma audiência ao Ministro para lhe dizer do desconforto com alguns procedimentos observados. HET primeiro se fez de desentendido e como insistisse no tema, optou por desconversar. Fabrício entendeu o recado e buscou Tonhão. Torcia para que dirimisse os boatos dando conta de que seu amigo entrara num negócio pesado por lá. O segundo era para, caso o primeiro se provasse mentira, buscar apoio. Começo da conversa e tinha se decepcionado profundamente, muito menos pelo fato de o poder lhe haver subido à cabeça, mas porque ficara evidente que os rumores não se tratavam somente de fofocas.
Dificultava e provocava travas no que sentia não estar correto e aquela gente, acostumada com o dinheiro grande, começou a se mexer. Esforçaram-se em convencê-lo a entrar no esquema, que todo mundo participava e que era mesmo usual que se abocanhasse - incrível que chegavam a usar eufemismos, tais quais taxa de urgência e de administração - um ínfimo percentual sobre os contratos. Algo que parecia mesmo nem fazer diferença diante do tanto que se levava em outras áreas, iam se justificando.
Foi aí que tiveram início os recados. O primeiro, bem discreto, foi de Antônio Carlos a lhe dizer que ele estava reforçando a fama de lenta da máquina governamental, na medida em que segurava os processos com o argumento de que seriam necessárias umas análises mais acuradas. Os alertas se davam num crescendo. A cada um deles, o nível subia mais um pouco. Foi assim até que vieram as ameaças e o envelope pardo havia sido a derradeira e definitiva. Fabrício, enfim acordou. Estava mais do que evidente de que a hora da partida tinha se dado bem lá atrás.
Apanhou em sua pasta de couro o dossiê preparado nos últimos dois meses e do qual jamais se separava. Nomes, quantias, processos e demais dados, tudo detalhado. Fez uma última e rápida revisão na introdução e anexou as três folhas com as fotos e os endereços por onde deviam começar a investigação relativa ao envio daquela ameaça. Enviou uma mensagem idiota, aparentemente sem sentido para Lívia. A resposta veio com outras palavras bobas. Esperou que Dona Eneida, seus assessores e demais funcionários fossem almoçar e gastou o intervalo tirando 5 cópias da papelada.
Digitou as três linhas da carta de demissão e a imprimiu em duas cópias. Guardou-a, ainda sem assinar, no bolso do paletó. Fechou o laptop e o colocou na bolsa. Sentia-se, aquilo era estranho demais, ao mesmo tempo mal e aliviado. Eram uma e meia da tarde quando pediu uns envelopes grossos e grandes para Dona Eneida. Vestiu o paletó e só lhe disse que iria para uma reunião fora. Ainda na porta voltou o rosto para lhe dizer que retornaria antes do final da tarde. Envelopes debaixo do braço, a pasta mais inchada e pesada com o laptop, o original do dossiê e mais alguns documentos importantes. O motorista alertado por dona Eneida de que o Dr. Fabrício descia já o aguardava. Ordenou que rumasse para o Centro Empresarial. Indagado se era para esperar, dispensou o carro. Numa papelaria, sem perder de vista as cópias, pagou para que as encadernassem. Em seguida assinou a primeira página de cada uma delas na qual fazia um breve relato do conteúdo. Lá mesmo na papelaria lacrou os envelopes, no smartfone buscou os endereços que de antemão havia registrado. Três pacotes foram para gente de confiança no exterior, com quem já havia feito um primeiro contato. O quarto foi endereçado ao Ministério Público, aos cuidados de um procurador que admirava por sua retidão e o último enviou para um delegado Federal de quem também, por motivos semelhantes, era fã.
Tomou um táxi na rua e para se garantir que não era seguido, deu um endereço bem distinto. Trânsito pouco e pôde reparar que ninguém se mantinha permanentemente atrás deles. Orientou então para que rumassem para o Aeroporto. No ponto de encontro previamente agendado abraçou Lívia e suas meninas. Admirava a coragem da sua mulher, a única pessoa em quem, naqueles últimos tempos, confiava. Embarcou suas quatro mulheres para São Paulo. De lá partiriam ainda no final da noite para o exterior. Foi para um bar e encheu a cara. Os dias seguintes lhe reservavam fortes emoções. Prometiam ser intensos e arriscados demais.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 20/04/2017