AZULEJOS
Doze horas em ponto. Será que isto é hora adequada para se marcar encontro de negócio? Só mesmo o obsessivo Olquiste, ser que parece oriundo de alguma galáxia distante, para me obrigar a um sacrifício assim. Tinha que ser esse professor alemão, totalmente aloprado a me forçar a ter torrados os miolos em frente ao Relógio de Sol.
Meu parceiro bem que tentou que as coisas se realizassem na segurança do hotel: “peças pra lá, dinheiro pra cá”, mas o gringo sistemático fez absoluta questão de que os dezoito azulejos lhe fossem entregues, sol a pino, no Parque da Cidade. Cada doido com sua mania e o nosso, de nome esquisito, se excede. Com vistas a aumentar a confiança, Jonas lhe afiançou ser simples intermediário ganhando uma ninharia com a parada. O profissional que ao longo de anos trocara as peças, ao mesmo tempo em que guardava as originais, é quem estaria com a mercadoria. Desse jeito, pela causa nobre dos azulejos de Athos Bulcão, me tornei pedreiro.
O que não sabia era que sujar roupa e fazê-la parecer velha é praticamente uma arte. Amassei-a bastante ao mesmo tempo que a lambuzava de barro retirado do vaso de samambaia. Aproveitando a chuva meti os pés nas poças borrando os sapatos há muito não usados. Respinguei óleo de cozinha numa bolsa antiga. A mancha fez com que envelhecesse ainda mais e dentro dela meti os bilhetes de loteria premiados. Havíamos definido um preço extorsivo imaginando que fosse comprar um azulejo apenas, escolhido a partir das fotos enviadas. Mas o homem, totalmente imprevisível, nos afiançou que levaria todos. Multiplicou por dezoito e nos deu seu de acordo.
Surpreendidos pedimos um prazo para preparar as encomendas, colá-las com argamassa enfraquecida deixando-as uns dias ao sabor do tempo. A tarefa foi cumprida nos fundos da minha casa no Núcleo Bandeirante. Nenhum azulejo repetido e cada qual mais lindo. A fornecedora, além de competente, é cuidadosa e as cerâmicas vitrificadas foram produzidas de tal forma que parecem saídas do túnel do tempo: perfeitos anos sessenta. Nosso cliente adquiriu gatos por lebres, mas jamais desconfiará retornando feliz e orgulhoso ao seu país. No apartamento de Munique estarão emoldurados alguns exemplares, mesmo que piratas, oriundos da criação genial do artista brasileiro.
Só poderia ser aquele grandalhão de cabelos avermelhados a contemplar o relógio de sol, como se saboreasse a epifania maior da vida. Aproximei-me e sussurrei a senha combinada: atos no balcão. A contra senha veio forte num inconfundível sotaque germânico: azulejos nos painéis. Falou autômato e sem me olhar com a mirada de êxtase em direção à vistosa sombrinha de moça, que é como eu chamo o relógio de sol.
Estendi em sua direção a sacola ansioso para me livrar da missão, pegar a erva e me safar. O alemão doido fez sinal de espere com a mão esquerda. Recolhi o braço e passei a também olhar a escultura. Queria descobrir o que nela havia que tanto encantava o nosso freguês. Não sei o quanto durou a cena, bem provável que não tenham sido nem três minutos, mas o medo amplia a percepção do tempo e aquilo pareceu ter demorado uma eternidade. E se a polícia desconfiasse de mim, um pobretão com uma bolsa velha estendida na direção daquele homenzarrão de paletó e gravata? E se chegassem e a revistassem? Evidente que o conteúdo jamais poderia estar comigo. E tremia ao me imaginar sem o dinheiro da venda e, pior ainda, privado da liberdade.
De repente deu-se a transformação e o relógio deixou de existir. Foi como se minha chegada tivesse acontecido naquele instante. Cumprimentou-me efusivo explicando que aguardava o fio do pino sombrear a linha das doze horas para fechar o negócio. Aquiesci de bom grado, sem dúvida que aquele não era o momento para se discutir com um louco. Estiquei de novo o braço na aflição de dar por encerrada a venda.
Prof. Olquistes apontou para um ponto além do relógio partindo célere para lá. Eu tentando segui-lo com minhas pernas curtas, a sentir raivas daquele homem excêntrico. Então se ajoelhou na grama seca e me tomou a maleta. Começou a desembrulhar azulejo por azulejo colocando-os no chão. Fazia sua maluquice ao mesmo tempo em que eu corria atrás das folhas do Correio Braziliense sendo espalhadas pelo vento. O comprador parecia fazer escolhas, separava um e outro experimentando diferentes arranjos. Combinava cores e desenhos a criar maravilhas nas peças que, apesar de falsas, constituíam-se arte praticamente pura. Se diante do relógio ele parecia receber a revelação do sentido da vida, agora a epifania se tornava ainda maior. Será que Deus se revelava naquelas obras? O alemão pirado chorava e dava gargalhadas beijando azulejos piratas e solfejando algo que me soava como uma Cantata de Bach.
Uma sirene fez com que me voltasse o pavor da prisão com a boca na botija. Temendo que a minha voz alta chamasse a atenção de ouvidos curiosos, lhe indaguei a respeito do pagamento. Mais uma vez sendo ignorado o sistemático alemão me entregou um pacotão, arrancado com dificuldade do bolso inchado do chamativo blazer xadrez. Peguei aquilo dando um jeito de espiar dentro e pude observar as quantidades de euros. Fui saindo em passos aflitos de quem anseia por correr, mas precisa seguir devagar. Chegado ao estacionamento o alívio de olhar em volta e reparar não haver sido seguido.
Jonas, mais ansioso ainda, me aguardava em seu apartamento e abrimos o pacote. Meu Deus, ali estava contida praticamente toda a vida do alemão. Além dos grossos maços de notas, mais do que o triplo do contratado, o embrulho guardava passagens aéreas, documentos, duas chaves, uma caderneta cheia de anotações, cartões de crédito com senhas, agenda e o passaporte do obsessivo mestre.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 15/05/2017