A VIDA TERRÍVEL DE GABRIELA
Papai é ladrão. É o que imprensa, justiça e o povo dizem, mas há exceções. Eu e mamãe não acreditamos nas coisas que contam dele. Ser filha de alguém assim, desprezado por todos, me faz muito mal. Se, pelo menos, ninguém soubesse disto a vida teria caminhado com um pouco mais de leveza. A droga total se deu porque, não sei como, me descobriram.
Nunca gostei de escrever, acho um saco fazer redações. Só que agora bateu essa vontade de registrar minhas coisas. Sinto-me sufocada e sem ter com quem papear. Mamãe só de chegar junto cai no choro. Então, “#partiu bonde da Gabriela”. Só terei que tomar cuidado com o pages escondendo tudo dos olhares curiosos. Dúvida: de que maneira iniciar? Veio a ideia: adoro séries e aí imaginei minha vida de garota boladona e deprê sendo narrada em cinco episódios pela TV.
Episódio 1
Sabe o que se diz por aí que seja uma família normal? Pois a gente era uma. Morávamos em um apartamento de dois quartos, carro na garagem e as alegrias, chatices e tristezas de toda família comum. Gente que de tão normal parecia esquisita. Família com pai e mãe marcando em cima, alertando para se tomar cuidado com limpeza, arrumação do quarto, com estranhos, com os gastos... Família normal de ter que usar cheque especial de vez em quando e de não me dar os presentes sonhados.
Até os oito anos fui a poderosa da casa. Aí chegou Thiago, agora com cinco anos, azucrinando tudo. Tem horas que adoraria que ele não existisse e esse desejo me ocorre tantas vezes que a consciência tem pesado. Sábados passados nas casas dos avós e domingos com cinema, ou parque seguido de lanche no Mcdonalds. Naquela época nosso carro estava viciado em cinco caminhos: o do trabalho de papai, minha escola, a creche do pestinha, a garagem do supermercado e a academia onde mamãe malhava. Em janeiro, entulhado de um horror de coisas - até ventilador a gente levava - de quase não caber a gente dentro, partíamos para o litoral.
Episódio 2
De uma hora para outra deixamos de ser família comum e esta foi uma mudança para lá de boa. A preocupação diária com o dinheiro terminou como se por alguma mágica. Os finais de semana ficaram diferentes. Da Tijuca fomos parar no Leblon. Apartamento pertinho da praia, com quatro quartos e três vagas na garagem. Mamãe ganhou o automóvel dela e papai só andava em seu lindo BMW preto. Nem um ano se passara e nova mudança acontece: aqui estamos no condomínio dos poderosos da cidade. Os artistas que nos primeiros tempos ficava toda bestona de encontrar, agora “tô nem aí”. Casa enorme dessas de abalar geral a galera, piscina igual de clube e quadra de tênis, que para usar os velhos contrataram professor.
Deixamos de ir para a “nossa praia” ao encontro dos parentes e companheiros de sempre e passamos a curtir Miami, New York e a Disney. Larguei os antigos amigos e agora estudo numa escola bilíngue. Passei um sufoco porque as aulas de inglês no antigo colégio eram poucas. Além do idioma custei a me adaptar aos novos colegas, bando de metidos a besta achava. Mamãe abandonou a função de ser nossa motorista. Agora Jamerson, num carro grande e importado, era o responsável por esta obrigação.
Episódio 3
Um dia Isabella, amiga mais próxima na escola nova, me perguntou assim:
- Gabi, o que o seu pai faz para ganhar tanto dinheiro?
Respondi que ele era funcionário público e que fora promovido. Com o salário maior de chefe a gente pôde se mudar de casa e escola. Ela só sorriu e balançou a cabeça como quem estivesse me achando uma menininha inocente. Então devolvi para ela:
- Bella, por que você quer saber sobre o trabalho do meu pai se nem sabe quem ele é?
Foi aí que escutei algo que a princípio não fez muito sentido para mim.
- É que lá em casa meus pais comentaram que ele está envolvido em investigações dos negócios do governo. Ele não se chama Roger Torrenegra Jardelett?
- Sim, é este o nome dele.
- Gabi, você acha mesmo que o salário do seu pai, mesmo com promoção, pagaria mensalidade dessa escola, motorista particular e casa no condomínio no qual você mora?
Sempre achei Isabella mais madura e inteligente do que as demais meninas e garotos da turma. Penso mesmo que foi por isto que nos aproximamos uma da outra e nos dávamos tão bem, mas aquilo, mesmo sendo meio confuso para mim, me bateu esquisito na cabeça. Não foi algo que engoli legal. Atenta fui reparar mais em papai e pude ver o quanto ele andava agitado. Tentei armar uma situação para bater um papo sério com mamãe, mas não houve tempo.
Episódio 4
Estava acordada e, como sempre, atrasada para a escola. De repente ouvi vozes altas e desconhecidas vindas do andar de baixo. Susto mesmo foi quando invadiram meu quarto. Entraram sem ao menos pedir licença. Dois policiais saradões, armados e vestidos de jeans e camisetas pretas. Abalada ao extremo me sentei na cama, me esforçando para permanecer de olhos fechados, enquanto reviravam tudo. Saíram levando o note com as matérias da escola, celular e o ipod com meus sons da hora. Fuçaram a casa toda. Quando tudo silenciou abri um pedacinho da cortina e os vi indo embora, papai com eles. Braços para frente, uma blusa escondendo as algemas e aquele bando de homens carregando os computadores da casa, além de muitas caixas e sacolas.
Os vizinhos a acompanharem a cena. Até Leandro o gatinho morador da quadra de cima veio. A vergonha terrível que tive estava misturada à raiva e sentimento de injustiça. Aquilo só podia estar errado. Papai era inocente e o que mais desejava naquela hora era que o mundo acabasse em um buraco, escuro e sem fim, para que me metesse nele. Mamãe no sofá da sala tremia olhando o nada na parede. Ficamos abraçadas e choramos até parecer que nem mais lágrimas havia. Naquela semana não tive coragem de ir à escola.
Episódio 5
Papai tinha se tornado um dos homens mais famosos do Brasil. Manchete diária nos sites de notícia, jornais e televisão. Só se falava no nome dele e a cada hora aparecia alguém com novidades a respeito do que diziam que tinha feito, levado vantagem e roubado. Eu não podia acreditar naquilo e, até acho que passados uns dias, no país inteiro só nós duas acreditávamos em sua inocência. Aí começou a parecer que a gente sofria de alguma doença contagiosa. Amigos sumiram e parentes nos evitavam. A vida continuava e resolvi enfrentar a escola. Afinal, não havia nada a temer. Mesmo que fosse verdade que meu pai houvesse gatunado o que é que tenho com isto? Mamãe comprou um laptop que não dava para aguardar a devolução do meu e baixei o que estávamos estudando.
Em sala foi impossível não reparar nos olhares e risinhos da turma. A vontade daquele buraco negro onde pudesse me jogar e sumir tomou conta de mim. No intervalo nem Bella veio ficar comigo. Sem fome andei até o lago das carpas. Ouvi vozes das meninas e achei que vinham para me fazer companhia. Qual nada, em ritmo de funk cantavam: “ladrão, ladrão; o pai da Gabi roubou a nação e vai mofar apodrecendo na prisão”. Voltei-me para os peixes como se aquilo não fosse comigo. O refrão ensaiado continuava sendo repetido. Resisti, mas quando ouvi a voz de Bella cantando colada ao meu ouvido me virei e ataquei. Joguei-a no tanque e saltei em seguida afundando sua cabeça. Arrancaram-me e me levaram à direção. A vadia passou por mim vomitando água suja.
E a série termina assim: De novo em casa, dez dias passados, acompanhada vinte e quatro horas para que não repita a tentativa de ser engolida pelo buraco imenso. Mesmo assim, por precaução, mamãe escondeu seus vidros de remédios.
Conto elaborado para a oficina virtual de escrita de Henry Bugalho tema 12 – personagem infantil feminina, forte e que não seja princesa.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 17/05/2017