POLÍCIA E LADRÃO
Brincadeira melhor do que a de polícia e ladrão nunca conheci. A turma da rua, praticamente toda, gostava de ser da banda da ordem. Só Netinho, Torresmo Preto, Alemão e eu curtíamos o lado da ousadia: éramos a bandidagem. Alguém vinha com a pergunta: quer brincar? e eu com meus três companheiros logo respondíamos: se for de polícia e ladrão claro que estamos dentro.
Nas brincadeiras, me recordo bem, a gente sempre se dava melhor do que os tiras. Acho que isto acontecia porque eles eram por demais certinhos evitando mentiras e outros rolos. Do nosso lado estávamos totalmente abertos para fazer de tudo no afã de enganá-los. Sem problemas lançávamos mão de atitudes que fugiam às regras combinadas dentro do nosso jogo. O cuidado era só não deixar que descobrissem que a gente havia burlado as normas.
Torresmo Preto era o mais novo e o mais sabido. Perdi contato com ele logo que nos tornamos adultos. Estava entrando na faculdade e ele tinha parado no começo do segundo grau. Da última vez que nos vimos contou-me, como grande vantagem, que o Exército o havia dispensado do serviço militar por causa do bafo de bebida. A resposta afirmativa ao sargento de que tomava todas, selou seu destino fora dos quarteis.
Perguntei-lhe se não teria sido uma boa ter se tornado soldado e me respondeu que não, que mamara bastante naquela noite anterior simplesmente para provocar a dispensa. Então indaguei dele o que iria fazer naquele ano, eis que estava na complicada situação dos que nem estudam e nem trabalham. Respondeu-me que quem cuidava dele era Exu, de quem era filho, e que bons caminhos lhe estavam reservados por seu pai.
Da minha parte opinava que o regime militar poderia ter dado rumo melhor à sua vida, um freio mesmo nessa questão da bebedeira. Ao mesmo tempo, refletia, que seria praticamente impossível que aguentasse a vida dura e de disciplina da caserna. Bem depressa ter-se-ia insubordinado, tomado, além das pingas, umas cadeias e até mesmo ter sido expulso das fileiras. Uns anos depois e vi o quanto me enganara. Esperava o sinal abrir diante de uma avenida de mil carros, quando reparei que do lado de lá sua mãe também aguardava pelo verde. Permaneci parado e ela me contou que Deus ouvira as suas orações e havia conseguido arrastá-lo para a Igreja. Após se entregar para Jesus parou com a bebida. Só que aquela conversão não durou muito.
A ser fiel de pouco dinheiro, obrigado ainda a dar dez por cento ao pastor, optara por trabalhar, mesmo com a total discordância materna, na contabilidade do maioral da boca. Não tornou ao copo, mas coração da mãe achava que a havia trocado pela cocaína. Contou-me a história toda para dizer que se tornara importante no movimento do tráfico, era o cara das ideias, o assessor maior da facção. Após ter me tornado conhecedor da vida dele pelas notícias maternas, dei meus jeitos de acompanhar à distância a vida de Torresmo Preto. Ria porque agora seu nome era bem outro. Quando estourou a guerra e o grande Cachorro Louco, traído, virou presunto, inteligente demais que ele era, aproveitou a oportunidade para se tornar maior ainda. O homem, onde não manda, tem influência e isto de Norte ao Sul do país.
De Netinho as notícias vieram primeiramente por antigos amigos e logo depois pela imprensa. O cara, tal qual Torresmo, acabou ganhando fama, Aliás, ele é o tipo de pessoa da qual é sempre bom se saber por aonde está andando. Desprovido de caráter, eu gostava de lembrar que só três pessoas eram consideradas pelo sacana: ele, ele e ele. Foi líder comunitário e daí para a política o pulo foi pequeno. Virou vereador, foi deputado estadual, em duas ou três legislaturas federal, até que nas últimas eleições a víbora se tornou nada menos que senador da república.
Alemão mesmo sendo criado com tremenda dificuldade só pela mãe, que de pai ele nunca soubera quem teria sido, não deu bobeira e se dedicou com afinco aos estudos. O mais incrível foi que passou de primeira no vestibular da Universidade Federal e sabem em quê? Pois é, Alemãozinho virou estudante de medicina. Tornou-se doutor, escalou rápido na montanha da vida e hoje é dono de hospitais. Eu mesmo já fui tratado em um Centro de Saúde bem bacana, que faz parte da Rede dele. Um ano e pouco atrás, era uma segunda-feira, ouvia o rádio para saber os resultados da rodada e a classificação do meu time no campeonato nacional. De repente ouvi que ele tinha sido levado preso pela Polícia Federal. Meu amigo envolvido em falcatruas com o Sistema Único de Saúde. Acompanhei o caso e vi o quando ele estava aprontando. Uns meses depois o soltaram, mas tem uns seis inquéritos correndo por aí em suas costas.
Do quarteto que adorava brincar no lado negro da força, só eu dei certo. Vivo bem e, ao contrário deles, nem sofro de insônias e preocupações. Passaram a dizer que fiquei doido quando deixei de ser uma pessoa do status quo. Tudo e todos foram ficando distantes, sendo abandonados no passado. Não que deixassem de ter feito, família principalmente, um tanto de esforços para que eu retornasse à vida que consideram natural. Loucos são eles todos. Existência normal é a minha: vida que levo brincando numa boa.
Acordo cedo, tomamos nosso café e começo a separar os produtos recolhidos durante a noite: papelão, papel branco, papeis diversos, latinhas, garrafas pet e alguma coisa de valor que de vez em quando aparece no lixo. Final da manhã e na carrocinha que chamam de “burro sem rabo” parto para vender as tralhas todas. Retorno com o dinheirinho no bolso e uma baita fome. Ao chegar próximo ao viaduto posso ver a fumacinha subindo e nessa hora começo a sentir o cheiro da comida gostosa que, debaixo dele, Solange me prepara. Duque vem me receber abanando o rabo. A gente come depois brinca e dorme.
Este conto foi redigido para o desafio do mês de junho dos Contorcionistas tendo por tema “vamos brincar?”
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 24/05/2017
Alterado em 24/05/2017