Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

MADRUGADA (ec)

Não é que eu me sentia tranquilo naquela manhã tão diferente? Você chegou e como quem não quer nada foi, espaçosa demais como era, tomando conta do apartamento. Quando me dei conta não havia mais a minha vida. Ela tinha se tornado a nossa existência. Prova patente foi que passou a trazer para cá escovas de dentes parecidas com as minhas.

Aos poucos veio se formando dentro de mim mais uma confusão, mas esta se resolveu naturalmente. Sem nem havermos gasto palavras com isto, constatamos que não existia mais a necessidade de termos duas escovas. Uma só bastava e aí as nossas bocas, que já tinham se acostumado a se tornarem uma em tantos beijos, também passaram a conviver com uma única, sempre rubra.

O que tinha se dado então na minha tão complicada vida foi o roubo da minha liberdade? Parece que sim e aí, é bom que se diga, a existência se tornou bem bacana. As crises de aflição e ansiedade diminuíram, guardei as raivas em algum escaninho que nem sei mais onde ele fica. Até a maldita tristeza deixou de me encher a paciência me pregando na cama. Consegui, enfim controlar o pavor de sair de casa. Sua mão fazia mágica e ao segurá-la sentia como se superpoderes houvessem sido ativados em mim, tornando-me um quase super-herói. Estava tudo tão bem que me dei alta, larguei médicos, lancei no lixo as caixas de remédios.

O problema foi que não reparei que a irritação sutilmente estava retornando. A tomada de consciência se deu faz pouco, mas aí tudo já havia ocorrido. Meio da noite e acordei desesperado pela falta de ar: você me sufocava. Abri os olhos apavorado e pude ver que, ao meu lado, você fingia dormir parecendo mesmo estar sorrindo. Mais que obvio que era mentira. Há pouco tentara me matar e só aguardaria que adormecesse novamente para me esgoelar. Jamais que iria acreditar naquela farsa e, antes que acabasse comigo, ataquei.

Meu bem, que louco tudo isto, você está com o corpo tão gelado. E nem me responde mais nada. Diga-me, pelo menos, quem será que daqui por diante irá segurar as minhas mãos? Agora chegaram aqui no quarto esses homens me arrancando à força do seu abraço. Dizem que irão me levar e nem imagino para onde seja. Ter perdido o calor de sua mão faz com que se aposse de mim o pânico. Em meus punhos meteram essas algemas geladas e elas jamais poderão me gerar segurança.


Este conto faz parte dos Exercícios Criativos que tiveram nessa quinzena o tema: “só os loucos sabem”. Venha conhecer outras obras em:
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Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 05/06/2017
Alterado em 17/05/2021


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