O SORRISO DAS MANHÃS
Quem descobriu quem? Não saberia dizer. A certeza era a de que depois que seus olhos a viram, a vida se transformara. Ganhara cores, poesia, música. Até aquelas ideias estranhas que costumava ter, como se por conta de algum feitiço, deixaram de lhe povoar a cabeça.
Ao acordar, o primeiro pensamento era dela. Como estaria vestida ao descer lá do alto da ladeira? De uma coisa tinha certeza. É que, igual a uma mágica daquelas de circo perdido na infância, a cada dia, ela se tornava ainda mais bonita. Como se aumento da beleza fosse possível de haver em uma pessoa que já era tão linda. Ao passar diante da casa ela lhe lançava, junto com o olhar que o fazia trêmulo, o sorriso mais doce do mundo.
Ah, como desejava que o deixassem na varanda até que, em alguma hora da noite, ele a pudesse ver retornar. Ganhar um segundo sorriso diário, ser marcado de novo pelo olhar que o desmontava. Mas eles eram implacáveis e mesmo que fosse possível lhes comunicar tal anseio, algo assim jamais lhe seria concedido. Antes de terminado o dia e lá vinham eles para recolhê-los e levá-los para a incômoda hora do asseio e o lanche noturno.
Já deitado, como a sua cama ficava encostada à parede da rua, esforçava-se ao máximo na tentativa de segurar o sono, escutando os sons lá de fora. Após tanto tempo de observação, reparando nas idas e vindas de tanta gente, sabia em que direção se caminhava, se era alguém a subir, ou descer do morro. Mais ainda, distinguia se eram pés de mulher, ou de homem e até mesmo diferenciava os idosos com seus passos arrastados. Imaginava então seus pés a passarem, cansados, depois de um dia inteiro de trabalho. O que não podia saber é que o retorno se dava ao lado do seu homem. O gerente da loja era quem a trazia no carro. Permanecia um tempo lá no alto e depois rumava para casa, no intuito de cuidar da esposa e filhos.
Os finais da semana eram terríveis. Arrastavam-se na lentidão dos passos de tartaruga. A segunda-feira amanheceu gelada. As pessoas passavam encapotadas e, na tentativa de se protegerem da chuva e da ventania, quase que corriam. Naquela madrugada chegara mesmo a sofrer com uns receios de que, por conta do vento e da chuva, optassem por mantê-los dentro de casa. Aliviado, enfim estava a postos no lugar de costume. Deu a sua hora e nada de ela passar. Estaria atrasada? Teria entrado de férias? Adoecera e precisaria dele? Arrumara uma carona e ele nem a vira atrás de vidros cerrados? Mudara-se no domingo? Mil hipóteses giravam enlouquecidas em sua mente.
Por bastante tempo alimentou a esperança de que em alguma manhã, ela o faria morrer de felicidade. A veria, de repente, passar mais esplendorosa ainda. Absoluta rainha. Nunca a esqueceu, da mesma maneira que jamais pôde saber da tragédia. Numa crise de ciúmes o amante violento a matara. Lá naquela manhã de inverno ela havia, qual o vento, passado pela derradeira vez, fria, no rabecão da polícia.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 28/08/2017
Alterado em 18/05/2021