ENTREVISTA NO MUSEU
Gravando? Estou nervosa, não acreditam? Só mais uns segundos para baixar a tensão. Quem diria, não é? Cinquenta anos de estrada e assim aflita. Estivesse no palco seria mais simples. Sei dominar uma plateia. Provocar dores na barriga, destroncamentos dos maxilares, saltos acrobáticos de dentaduras, xixis incontinentes de tanto gargalhar. Mas aqui me pedem um depoimento pessoal. Falar de mim é complicado.
Sempre fui reservada. Vocês riem. Essa mulher parecendo liberada, e que alguns chegam a considerar escrachada, usa do humor para evitar que os olhares caiam sobre ela. Uma amiga dizia que, ao contrário de tanta gente “livro aberto”, eu sou um daqueles “lacrados a cadeado”. Ai, que gravaram essas bobagens? Vocês vão apagar esses troços, não vão?
Estou livre para tratar do que quiser e só me farão perguntas em último caso, não é assim? Não mediram o risco que correm de não sair nada que preste após a edição. Ah, acham graça? Pois minha vida, assim começo, ao contrário da profissão, está mais para a tragédia.
Sou Cláudia e pensava que a razão de ser desse nome fosse a atriz italiana. Isto até que uma professora me afiançou que ele significa manca. Falou desse jeito, como reforço da carga de bullying que eu carregava. Passei a sentir ódio do meu nome. Ao falar com mamãe ela me garantiu que, por essa época, nem conhecia a Cláudia Cardinale. Que o motivo de ter me batizado assim era outro. Este achei pior. Muito depois, ao conhecer a vida da xará, constatei que era mesmo impossível que ela fosse a inspiração. Era garotinha quando nasci.
Esperem, não me esqueci, vou lhes contar o motivo do nome. Uma cigana indicara para a velha que barriga pontuda, como era a dela, significava homem. Enxoval de menino e o danadinho ganhara até nome, adivinhem qual? Isto mesmo, Cláudio. Na frustração só trocaram o “o” pelo “a”. Cigana para reclamar? Partira há tempos para enganar grávidas de outras paragens.
Nunca fui bonita, mas se a natureza não me propiciou beleza, nos quesitos talento e inteligência ela não regateou. Estão fazendo gozação com essa minha afirmativa? Modéstia comigo não cola. Uma coisa que praticamente ninguém sabe: sou engenheira civil, algo raro naqueles tempos. Na turma de quarenta marmanjos só duas mulheres. Ouvidos ficaram cansados de escutar que ao nascer uma menina, Deus lhe perguntava: “quer ser bela, ou engenheira?” Precisa dizer mais? Nunca exerci a profissão e não foi por falta de querer, mas porque os machistas diziam que não seria capaz de controlar peões de obra.
Tornei-me artista por acaso. Uma amiga se inscreveu para um teste no teatro de revista. Era assim que se chamavam as comédias musicais daqueles tempos. Muita dança, mulheres sensualizando de pernas de fora e, no entremeio, críticas aos costumes e política. Textos picantes e, ao me recordar de alguns, reparo que hoje pareceriam inocentes. Donzelas não andavam sozinhas, ainda mais para se ir a um lugar daqueles. Teatro era local de fama duvidosa. Em casa, inventamos umas desculpas e no meio da tarde tomamos o bonde.
Se a tal era a outra engenheira da turma? Vocês me fazem rir. Claro que não. Eliana era uma moça bonita, cabelos longos, muito pretos, seios grandes e quadris largos. O que esperam, eu jamais lhes concederei: nem sob tortura opinarei se ela era burra. Resumo da história: minha companheira não foi escolhida.
Como não nos mandavam embora, ficamos por lá assistindo ao ensaio de outra peça. Nessa revista treinavam o momento de entrada em cena da mãe de uma dançarina. Avental, pano branco amarrado na cabeça e, brandindo uma vassoura ela, possuída de zelo materno, invadia o palco. Seu intuito era o de libertar a filha do teatro de revista, que ela considerava como um antro de perdição. A escalada, uma atriz madura, faltara e o diretor cumpria tal papel. Várias repetições e parecia evidente que ele não gostava da maneira como a mocinha escapava das vassouradas. Na plateia, somente nós duas e ele – vejam como é o destino – se dirigiu a mim. Queria que eu fizesse a mãe: entrar, correr, fingir umas cacetadas e desaparecer na outra banda do palco. Assim, ele poderia orientar melhor a cena. Evidente que disse não.
Será que o diretor me achou velha e feia, gente? Só sei que o gajo insistiu tanto, que o não inicial virou sim. Claro que em seguida quis recuar, mas era tarde. O contrarregra me entregou a roupa da personagem, uma vedete me ajudou a arrumar o pano na cabeça e estava pronta. Ao chegar a hora, bateu o pânico. Arrependida, relutava em sair da coxia protetora. Como não me decidia e um atraso colocaria tudo a perder, fui lançada ao palco por um assistente. Gritei um “seu desgraçado” e no embalo do movimento parti ridícula, aos tropeções, atrás da filha. Sentado na plateia o velho diretor, meio surdo, ouvira outra coisa. “Muito engraçado” foi o que escutou. Então a mãe, que no script, deveria entrar empertigada e sair calada, ganhou uma fala. Repetimos a cena algumas vezes e não precisei mais ser empurrada. A cada versão ele gostava mais do que eu ia criando. Ao final estava claro que adorara a minha performance. Convidou-me e no impulso da desempregada, louca para ganhar algum dinheiro, disse sim. A faltante perdeu o emprego.
Nos tempos de escola maldavam dizendo que Deus requeria a opção das menininhas entre a beleza e a engenharia. Por esta época Ele me apresentava nova questão: “permanecer na família, ou partir para o desregramento das artes?” Vocês não imaginam o que passei. Até meu pai, de quem jamais recebera atenção, apareceu a me nomear de doidivana, afirmando que se eu mantivesse aquela decisão, ele deixaria de me considerar como filha. Achei graça, pois que há muito não o via como pai. Sem apoio, fiz as trouxas e passei a morar com as meninas.
Estreamos e vi que aquilo era o que eu sabia fazer bem. A cada récita ia acrescentando mais um ou dois cacos ao meu papel. Em pouco tempo a minha personagem havia crescido. Tornara-se a antagonista daquele enredo simplista. Um ano depois e minha foto constava nos cartazes, meu nome era grafado em letras grandes. Aquilo era muito louco: eu atraía público. Papai surgiu querendo uma rebarba no meu sucesso. Foi então que tive a certeza de que havia vencido. A partir da terceira peça já dava os meus pitacos na elaboração do texto e mesmo na direção das cenas.
E olhem só o que esta conversa me fez recordar. Já gozava de certa fama quando ganhei um papel a “la Capitu”. Teria traído o meu marido? Para um caso assim a dúvida era irrelevante. Exigia-se que a “honra do macho” fosse lavada pelo sangue. Para a cena final uma bexiga com caldo vermelho, à base de anilina, era posta aqui entre os seios. O ponto a ser tocado para me encharcar daquele líquido gosmento. Ocorria a estreia e eu lá, prontinha para morrer. Fiz um movimento brusco ao abrir os braços e aconteceu o acidente, a bexiga saltou. Ao invés de o homem vir para cima de mim, ele correu, vociferando, atrás da bola a quicar no chão: “não fuja, coração maldito, meu punhal fará justiça à sua traição”. Aquilo era pior do que a mais escrachada comédia pastelão. Só que o povo adorou e daí por diante a peça terminava não com a minha morte, mas com o assassinato da bexiga traidora.
Presumo que tomaram conhecimento do rumor, de que tive caso com um dos maiores políticos da República. Afirmo-lhes que jamais me relacionaria com um tipo vil como aquele. Homem corrupto e metido a besta. O pilantra achava que seu poder lhe propiciava privilégios. Impertinente, quanto mais ele dava em cima, maior se tornava o meu nojo.
Acuada e mulher sozinha, o que significava quase sem direitos, pedi ajuda a um colega também discriminado, por ser gay e efeminado. Já que a justiça se mostrava incapaz de alcançá-lo em suas falcatruas, iríamos executar a nossa vingança em nome do povo. O salafrário mandava bilhetes, flores, ligava para o teatro diariamente, insistindo para que fosse à sua garçonnière. Combinamos de eu me negar a ir até ele, chamando-o ao meu apartamento com a história de que meu marido viajara. Ele se disse surpreso com o fato de eu ser casada. Mas como já tinha fama de reservada a mentira passou e, seco em mim como estava, ele topou.
Na tarde agendada, a campainha tocou e lá fui eu atender, fazendo cara de grande aflição. O ministro metido num jaquetão de seis botões, risca de giz, a deixá-lo ainda mais velho. Cabelos acaju, meio ralos, parecendo pintados há pouco. As mãos ocupadas pelo ramalhete de rosas vermelhas e o excessivo Dom Pérignon. Fiz que não queria que entrasse, mas forçou a porta, fechando-a atrás de si com o corpo. Fingindo desespero lhe contei que a viagem do meu esposo abortara e que o cujo acabara de chegar. O homem, pálido, quase deixou cair a preciosa garrafa. Neste momento o meu parceiro, esforçando-se para parecer bem másculo, chegou me perguntando quem era a nossa visita. Ao se deparar com o homem famoso, fingiu estar orgulhoso da sua presença. Convidou-o a que se assentasse e o picareta, numa falta de assunto de dar dó, a explicar que só passara para um rápido cumprimento, eis que morávamos próximos ao prédio da sua mãe. Meu companheiro, sarcástico, prosseguiu: “está levando a champanhe, mas se esqueceu do balde de gelo. Quer levar o nosso?”
Eu aqui relembrando a vida. E, melhor ainda, gostando. Sabem que ao abrir o convite de vocês eu larguei um palavrão? Dar depoimento para o Museu da Arte Cômica me passou o cheiro de prévia para obituário jornalístico. Daí que liguei para o meu doutor a lhe perguntar se ando bem. Vai que corram boatos de que estou na ponta da tábua? E fofoca, não nos esqueçamos, costuma ter um fundo de verdade. Ainda mais nesse caso, em se tratando de alguém cujo interessado é um museu.
O quê? Não acredito que o tempo tenha se esgotado. Não se deram conta de que a hora corria tão rápida? Pois não é assim, fugaz, a vida? Vocês todas jovens e eu com meus setenta e cinco anos a relembrar quando também era moça. Estar aqui me rejuvenesceu. E não me venham reclamar que falei quase nada da vida pessoal e que era esse o principal objetivo da entrevista. Contei sim, dei até furos de reportagem. Mas se acham mesmo, combinemos então que na outra encadernação, após mais cinquenta anos de carreira, centenária como humorista, virei até aqui para novo bate papo. Então estarei não como livro fechado, mas totalmente aberto. Uma bela brochura, cheia de fotos e textos sobre a minha intimidade. Nossa, passamos tanto tempo juntas e não utilizei um só palavrão. Vamos encerrar com eles?
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 02/09/2017