O PAPA FRANCISCO E O PACTO DAS CATACUMBAS
“Não se esqueça dos pobres” sussurrou no ouvido do papa o cardeal Hummes, ao abraçá-lo emocionado após a eleição papal. Francisco, não deixemos de lembrar disto, antes de partir para o Conclave, já tinha uma vida simples em Buenos Aires, sendo morador em um anexo da Catedral (e não no interior de um palácio, ou apartamento luxuoso). Era também conhecido por lá como mero usuário do transporte público, em suas idas e vindas para estar perto dos moradores pobres das favelas e periferias da sua diocese. Quem sabe, por tudo isto, ele nem precisasse daquela lembrança. Fato é que a realidade nos mostra que ele a assumiu de forma clara (1), a partir já daquele primeiro momento, quando adotou o nome Francisco(2).
Por que esta lembrança exatamente no dia de hoje? Simplesmente porque celebramos o aniversário do Pacto das Catacumbas. Infelizmente, tão pouco lembrado. Foi no dia 16 de novembro de 1965 que, liderados por alguns bispos - dentre eles dois profetas latino-americanos, Helder Câmara do Brasil e Manuel Larrain (3) do Chile – que quarenta e três bispos conciliares assinavam, durante uma Eucaristia no interior das Catacumbas romanas de Santa Domitila, o Pacto que, por conta desse local, ganhou tal nome. (4).
Tal documento previa, dentre outros pontos significativos, focados em uma vida pobre e de serviço, que os seus signatários não aceitariam as benesses do cargo episcopal. Ao contrário, buscariam uma vida simples, tal como o era (e é) a da grande maioria das gentes de suas dioceses. Tal compromisso fez com que Dom Helder, por exemplo, entregasse o Palácio Episcopal de São José de Manguinhos, e fosse morar na sacristia da Igreja das Fronteiras.
Apesar de não ter sido discutido nas sessões conciliares e muito menos fazer parte dos seus documentos, tendo ocorrido, de certa maneira poderíamos dizer assim, nas periferias dele, o Pacto teve a sua importância e muitas ressonâncias na Igreja. Cá com os meus botões, fico pensando: quem sabe se a Igreja daquela época não fosse tão eurocêntrica, não dando muita voz e vez aos latinos (5), a opção pelos pobres de Puebla não tivesse ocorrido no interior do próprio Concílio Vaticano II? (6). Nesses tempos em que Francisco nos pede uma Igreja em saída e que é melhor que ela esteja “ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, do que enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças”, faz bem recordarmos esse fato acontecido há pouco mais de meio século.
Rezemos pelos profetas que há cinquenta e dois anos se comprometeram com os pobres e para que os nossos pastores atuais, tal como Francisco, tenham também a coragem e a força de assumirem tal compromisso com os pequeninos, fazendo também, como discípulos missionários de Jesus, um Pacto das Catacumbas (7).
1 – Mais do que com palavras se dão com gestos concretos de acolhimento aos pobres e refugiados, que Francisco demonstra ser signatário, não com a letra, mas com a vida, do Pacto das Catacumbas.
2 – Como inaciano a primeira coisa que pensei quando anunciado seu nome, foi que homenageava o seu confrade Francisco Xavier e, com tal gesto, iria ter como foco do pontificado as missões.
3 – Visitando o santuário de Santo Alberto Hurtado, em Santiago, vim a descobrir que Santo Alberto e o profeta Manuel Larrain tinham sido grande amigos.
4 – Após esta cerimônia o Pacto se difundiu e cerca de 500 padres conciliares o firmaram.
5 – Apesar de que alguns latinos, dentre eles dois brasileiros (Dom Mayer e Dom Sigaud) tiveram atuação destacada dentre os cerca de trezentos bispos alinhados com uma Igreja voltada para a manutenção da cristandade.
6 - Prova de que o Pacto tenha sido significativo, foi que Paulo VI visitou as Catacumbas uns dias após, num gesto simbólico bem significativo de que concordava com ele.
7 - Para que quem já o conhece reveja e para os que ainda não o viram também conheçam, eis o Pacto:
"Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre
Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:
1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.
2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.
3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.
4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.
5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.
6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.
7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.
8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.
9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de "beneficência" em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.
10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.
11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral - dois terços da humanidade - comprometemo-nos:
• a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres;
• a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.
12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim:
• esforçar-nos-emos para "revisar nossa vida" com eles;
• suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo;
• procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...;
• mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10.
13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.
Ajude-nos Deus a sermos fiéis."
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 16/11/2017
Alterado em 16/11/2017