Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


O AUTOMÓVEL VERMELHO E PRETO

E eis que, ironia das ironias, herdamos a coleção de automóveis antigos. Aqueles mesmos que disputavam conosco a atenção do velho e nos venciam sempre. Ao passar pelo portal do Cemitério, os pensamentos ensandecidos se misturavam na mente. Lá dentro ficou papai e aqui fora me sinto aprisionada por tantos medos. Fundamental a necessidade de impedir que o carro vermelho e preto viesse até mim. Pânico com a possibilidade tão concreta de ter, daí a uns dias, que retornar para guardar Anselmo junto a papai. Horror de me deparar sozinha diante do futuro. O boletim médico da manhã não era nada animador. Reparo na frase escrita, parece que em latim, no alto do pórtico: “Morituri Mortuis”. Um guarda me vê a mirar o alto e, sem que lhe fosse solicitado, me faz a tradução: “Daqueles que vão morrer para os mortos”.

Quando papai me convidou para ir com ele ao Chile, cheia das melhores expectativas, imaginei tratar-se de uma viagem de resgate do relacionamento familiar. Envolta na maior inocência pensei que, enfim, ele se dera conta do descuidado para conosco. Tratava-se ali de saudável ação com vistas a uma aproximação. Ai, meu Deus, como fui ingênua. Não era nada disso. O velho não mudara nada.

Ainda no Galeão levei no rosto o balde de água fria: “É que o cardiologista me alertou que o coração anda meio esquisito. Até queria me internar, o malvado. Contei-lhe que tinha um negócio importantíssimo para fazer, coisa rápida e perto, viagenzinha de nada na América do Sul mesmo. Ele, mais que desaconselhar, me proibiu de sair do Rio. O melhor é que ficasse de repouso, até que avaliassem se seria o caso de outros stents, ou se haveria necessidade de nova cirurgia. Vai que decidam me passar na faca? Daí que não poderia deixar de ir a Santiago por nada. Seu irmão, alienado como está, tentaria me converter a todo tempo. E, pior ainda, imagina se ele cisma de largar esse barato de Deus e se chafurdar na coca novamente? Aí o que Anselmo me iria arrumar era confusão.”

Disse de banho gelado, mas aquele discurso me atingiu como se fora uma porrada potente na barriga. O que papai necessitava era de uma cuidadora para o caso de sentir algum piripaque. Desligado como sempre foi, óbvio que nem reparou no tamanho da frustração estampada no meu rosto. Não há nada que esteja ruim que não possa piorar e o velho emendou o segundo golpe: íamos a Santiago para conhecer um – e aí ele preparou a boca para dizer, numa tentativa de reprodução do mais autêntico sotaque britânico que, definitivamente, foi incapaz de convencer até a ele mesmo - “We will know the fantastic Rolls Royce Phantom II Continental 1934, red and black”.

Já que se está seguindo para o inferno, melhor que se dê as mãos ao capeta, diz a sabedoria das gentes. Aqueles tempos nos quais o amor e cuidado do pai eram disputados com a coleção de automóveis, iam bem longe no passado. Uma mulher se aproximando dos quarenta a agir como se tivesse, no máximo, uns doze era ridículo. Na comprida fila do finger, decidi que aproveitaria ao máximo aquilo tudo. Estaria com ele todo tempo, não me furtaria a ir ver o tal calhambeque, mas seria eu a escolher, para as noites, os restaurantes, os pratos e os vinhos.

O verbo usado pelo velho não era o mais apropriado. Ele dizia conhecer o automóvel, mas o seu desejo era o de adquiri-lo a qualquer custo. Sim, se tem algo que eu nunca vi acontecer, foi papai desistir de um desejo. O brilho nos olhos ao me falar em inglês do carro era mais do que prova disto.

Ao invés de hotel, o motorista nos levou direto à mansão do colecionador. Um alemão velho e ridiculamente magro. O senhor Andreas portava umas sobrancelhas imensas a protegerem olhos azuis demais. Vestia calças folgadíssimas e amarrotadas, uma camisa social que desde há muito merecia ter sido lavada e uma barba para lá de mal feita, apresentando uns pequenos tufos no chupado rosto e pescoço afora. Diante de nós se apresentava o típico homem que não possuía uma companheira ao lado. Um pobre diabo solitário que não sabia se cuidar, usar melhor o dinheiro, com toda certeza, existente em excesso.

Não nos convidou a entrar. Levou-nos rumo aos fundos, através de uma trilha em meio ao jardim. Tudo florido e bem cuidado. De repente, nos deparamos com o grande galpão. Outro senhor, talvez uns dez anos mais novo, nos esperava. Abriu os dois cadeados e, usando o controle remoto, fez subir a porta. Uma coleção bem menor do que a nossa, bestamente, constatei. Papai era menino no parque de diversões. Queria admirar carro a carro e o gringo a se adiantar, em passos curtos e ligeiros, no anseio de nos encaminhar para o lugar onde o tal Rolls Royce do encantamento estava exposto.

Não se é preciso apreciar automóveis antigos, muito menos entender deles, para se constatar ser aquela uma obra de arte. A máquina era bela e imponente. Papai, como bom negociador, fingiu que não notara nada de especial no seu objeto de desejo. Ao contrário, foi logo perguntando pelo preço do Bentley verde, ao lado. “Este, como os demais, não estão à venda. Aqui, para negócio, só ele”. Andreas pontuou tocando o lindo carro vermelho com teto e capô pretos.

Coisa mais chata aquela conversa de cerca-Lourenço. Dei meia volta e fui saindo. Bem mais interessante do que observar o jogo da negociação de caras velharias, seria admirar os jardins da residência. O empregado se mantinha fiel à porta. Parecia vigia para não deixar que ninguém escapasse lá de dentro. Foi notório o seu desconforto com a minha saída. Esforcei-me para demonstrar gentileza, quebrando o gelo e tentando deixá-lo à vontade. Elogiei no meu castelhano macarrônico: “Que belos jardins temos aqui, os senhores estão de parabéns.” Ele sorriu sem graça me explicando que suas obrigações eram cuidar da segurança e, com o ajudante Alonzo, também dos carros.

“Os jardineiros são outros, uma família composta de marido mulher e dois filhos. Gente animada, das mais brutas para trabalhar. Moram em Alberto Hurtado, periferia da capital. Chegam quando ainda está escuro para retornar no meio da tarde. Por isto não os vemos. Lamentavelmente o filho mais novo apareceu com uma tristeza de causar desespero, vive sem ânimo nenhum para sair da cama. Dona Alícia também não tem aparecido, pois que, de uma hora para a outra, lhe surgiram umas dores fortes e inchaço nas juntas. Na verdade, caso a senhora tivesse estado aqui há uns meses atrás, aí é que teria ficado deslumbrada com as plantas. A dona é gentil, mas as coisas, por falta de mãos para cuidar, não estão bonitas. Mas mesmo assim, pode deixar que transmitirei ao amigo Lorenzo os elogios.”

Causava-me certa aflição a fala daquele homem – qual era mesmo o nome dele? Ao abrir a boca, sua dentadura frouxa, parecendo viva, me passava a impressão de fazer uns malabarismos para não cair. Um lugar de gente estranha aquele. Os seus braços e mãos, pequeninos, eram totalmente desproporcionais ao corpo grandalhão. Fiz menção de caminhar e ele me pediu, com um gesto de espere, que aguardasse. Iria indagar do patrão se eu poderia passear pela propriedade. Respondi-lhe que deixasse de lado, melhor que não fizesse isto. Sentei-me ao seu lado no banco de pedra e, parece que arrependido por ter falado tanto dos jardineiros, o empregado havia se fechado em silêncio. Após algumas tentativas para lhe quebrar o mutismo, ele, sempre olhando a porta, começou a me responder às perguntas. Que trabalhava ali desde a construção da casa, logo depois da chegada do senhor Andreas ao Chile. Um homem reservado e que praticamente nada se sabia dele. Nunca, que tivera esposa. Circulavam mesmo umas histórias de que ele era fugitivo da guerra. O que podia afiançar era que a coleção começara só com carros alemães. Bem após foi que começaram as aquisições de automóveis oriundos de outras nacionalidades.

“Mas acho que não é nada disso. O problema é esse carro mal assombrado”. Esforcei-me para não demonstrar cara de riso e inibi-lo. “Até o final do ano passado isto aqui era às mil maravilhas. Foi só chegar esse vermelho e preto de Satanás para as coisas desandarem. Ele, senhora, possui poderes que só podem ser dos infernos. Não reparou na magreza do patrão? Meus receios são de que morra de uma hora para a outra e eu fique abandonado, sem ter para onde ir, pois que algum parente logo virá para arrematar as heranças.” Abri mais os olhos e avancei o rosto animando-o a que fosse em frente. Até que enfim uma conversa interessante, mesmo com aquela boca me deixando agoniada. “A senhora imagina que ele liga sozinho e que o senhor Andreas brigou comigo por ter enchido o tanque de combustível dele, mas eu nada havia colocado lá? Alo, no princípio achando graça, me dizia dos pequeninos choques nas mãos ao lustrar o danado. Desses, que a cada dia foram se tornando mais fortes, nunca tomei, mas que sinto uns tremores esquisitos ao passar perto do desgraçado, eu sinto.”

Sem dúvidas que aquela histórias eram umas dez vezes mais atraentes do que o papo de apaixonados por automóveis lá de dentro do galpão. Incrível verificar até aonde caminhava a criatividade e, por que não, as crendices e os medos na mente humana. Com as minhas caras e bocas de surpresa e espanto, ele, sempre preocupado com a chegada do patrão, abria ainda mais o bico, aumentando a ameaça à dentadura.

“E a senhora conseguiria me explicar essa coisa de ele ter vontade própria? Pois, por pelo menos três vezes aconteceu a partida no motor e sou capaz de jurar, pelo que há de mais sagrado, que ele tem dado umas voltas pelo salão. Eu e Alonzo até reparamos nas marcas dos pneus no chão. E isto sem nem lhe falar dos faróis. Não é que eles cismam de, do nada, piscarem? Tudo escuro no galpão e lá de fora, pelas frestas de portas e janelas, se repara no brilho de luzes que se acendem e se apagam. Intrigado, uma noite dessas venci os medos e fui ver de perto aquela coisa estranha e era ele, o maldito, que parecia brincar de acender e apagar suas luzes. Passei a sofrer sonhos terríveis e neles o carro sempre a correr atrás de mim, sem motorista e buzinando uma espécie de gargalhada na volúpia de me atropelar. Contei para Alo desses pesadelos e me apavorei. Não é que ele também os tem? E agora mais essa: a falta de apetite do patrão. As empregadas a nos dizer que nem toca na comida. Estômago vazio ataca os nervos e ele, que já era tão arredio e irritado, agora está impossível. Alonzo diz que vai embora, como também estão garantindo partir os jardineiros. Dona Clara, a cozinheira, ganhou uma tosse dessas parecidas com insistentes latidos de cachorro. As arrumadeiras, a se queixarem de problemas. Sem que nada houvesse modificado suas dietas, Vero reclamava de diarreias constantes e Dores de séria constipação do intestino. Vira e mexe estão a dizer que não aguentam mais essas histórias de carro amaldiçoado adoecendo a todos e que antes que caiam de cama, melhor buscarem outro trabalho. Isto aqui vai virar um deserto. Só eu, que não tenho para onde ir e o senhor Andreas que é o dono, permaneceremos. Mas dois idosos, como irão cuidar da propriedade, da casa tão grande e dos automóveis? Toda noite rezo para que esse emagrecimento não seja alguma doença ruim, um câncer que esteja comendo por dentro o patrão. A senhora é capaz de imaginar isto aqui sem ele? Nem consigo pensar em algo assim, Deus me livre.”

Não queria constranger e muito menos inibir o pobre coitado. Assim, continuava a fazer umas expressões de que me encontrava pasma, como se aquelas histórias feitas para supersticiosos e crianças medrosas, me deixassem aterrorizada. E nada dos dois homens saírem. Resolvi entrar, o papo de assombração começava a se tornar repetitivo. Aí imaginei - sorrindo para mim mesma - o que aconteceria se ele soubesse que tencionávamos adquirir o tal coche sinistro?

Cheguei a tempo de reparar que a venda estava fechada. No dia seguinte, papai orientaria seu contador para que desse um jeito de transferir os dólares. O velho parecia um menino abraçado ao seu tão sonhado presente de Natal. O alemão também demonstrava satisfação, quem sabe alívio, com o negócio. Conversavam então sobre a saída do carro do país e a consecutiva entrada dele no Brasil. A verdade é que não viam nenhum problema, desde que se disponibilizassem um agrado aqui, outro acolá, para que o Rolls Royce, totalmente legalizado, mudasse de nacionalidade.

O vendedor sugeriu que o transporte fosse feito pelo mar, dentro de um container, até o Porto de Santos e de lá, por caminhão, para o Rio de Janeiro. Só que papai, aflito como criança que não pode perder um minuto de brincadeira, exigia - “às favas que fosse ficar caro!” - mais pressa. Que arrumassem um caminhão que o levasse, atravessando a Argentina. O alemão terminou a conversa dizendo que era assunto resolvido. Havia um motorista de confiança, acostumado a fazer esses traslados para colecionadores em seu baú. Caminharam até o pequeno escritório. Andreas pegou a caderneta, conferiu o número e dali mesmo ligou para o tal homem. Combinaram que ele nos procuraria dali a duas horas no hotel.

Nunca que pudera ver meu velho tão leve e solto e aquela alegria, de alguma forma, estava, ridiculamente, me contagiando. Após o banho ele se pôs, aflitíssimo, a aguardar a chamada da recepção. O telefone tocou e eu o alertei que daí a uma hora passaria pelo hall, para que fôssemos comemorar a aquisição do mimo de luxo com um jantar. Papai sorriu concordando e partiu célere, agilidade de garoto, para o encontro.

Conforme planejara, seria minha a escolha do restaurante, cardápio e bebida. Papai estava plugado em duzentos e vinte volts. Falava, contava e repetia da excelência do negócio, de que no Brasil nenhum colecionador era possuidor de uma preciosidade daquele quilate. Que calaria a boca de uns milionários paulistas, gente metida a besta e que sempre sonhara com uma peça daquelas em suas coleções. E mais, ainda, que tinha sido uma pechincha, o tal Andreas devia estar caducando, pois que lhe passou o carro por um preço menor do que a metade do seu real valor. No começo ainda tentei entrar na pilha do velho, mas eu não tinha, definitivamente, aquele pique para o assunto e aí, para que a noite ficasse mais leve, saboreei, mais do que ensina o bom senso, o vinho. Quando voltamos para o hotel papai solfejava uma marchinha de carnaval e eu estava, literalmente, bêbada.

Apaguei de imediato, sendo acordada pelo toque irritante do celular. Era noite ainda e a areia dos olhos me confirmava o quão pouco dormira. Ligação do Brasil e a notícia terrível fez passar o efeito da bebida. Tia Inês avisando que meu irmão sofrera um acidente e se encontrava mal. Abandonou Jesus, tomara e cheirara todas, refleti. Papai devia sonhar com o Rolls Royce e decidi poupá-lo até o amanhecer. Pesquisei o primeiro voo para o Brasil e fiz a reserva das passagens. Tentei ler um livro, o velho roncava que parecia mais uma locomotiva. Tive a intuição de que o mano morrera e que aquela era uma maneira de nos preparar para o desfecho. Mas me enganara. Fiz algumas ligações e vi que era aquilo mesmo, ele estava péssimo e o risco de óbito era bastante alto. Acordei-o, enfim, e lhe dei a notícia.

Papai me escutou, balançou a cabeça, baixou os olhos uns segundos, olhou-me novamente e foi implacável: “que não se podia fazer nada e que a presença dele, fosse em Santiago, ou no Rio era indiferente”. Incrível, aquele automóvel importava mais do que Anselmo. Aquilo sim, ao contrário da conversa mole de assombração da tarde anterior, me era chocante. Desandei a chorar e ele a me perguntar por que as lágrimas? “Está bem, lá de casa termino de resolver as questões.” Consentiu por fim em viajar. Esforçava-me, cabeça pesada da notícia e da noite anterior, para engolir uma torrada e papai, coração frágil, viciado, só conseguia pensar no carango vermelho e preto que adquirira do alemão. Mamãe com Alzheimer sem se dar conta de nada que acontecia à volta, mais morta do que viva. Meu irmão, antes drogado, ultimamente só pensava em religião. Eu e meu dedo podre para escolher os namorados. Família de malucos, concluí.

Fomos, óbvio, direto ao hospital. O médico nos disse que não se percebiam evoluções, mas que o fato de Anselmo ser jovem melhorava um pouco os prognósticos. A única notícia boa estava afixada na placa em frente: visita das 14 às 15h, mais uns minutos apenas. Uma por paciente e foi com evidente alívio que papai soube daquilo. “Vá e dê um beijo nele por mim. Diga-lhe que o adoro e que ele vai sarar logo. Enquanto isto darei uns telefonemas.”

O mano ligado a uma parafernália de tubos e fios. Beijei seu rosto desfigurado, ele abriu as pálpebras inchadas e disse oi, numa mistura de careta e sorriso. Fechou novamente os olhos e começou a falar baixinho, obrigando-me a quase encostar o ouvido em sua boca. Ponderei que permanecesse calado, importava que eu estava ali com ele. Mas insistiu, dizendo-me que por mais que achássemos que ele se encontrava drogado e bêbado, sentia a consciência tranquila. Estava limpíssimo quando da tragédia. Disse que temia morrer e que necessitava demais me contar do seu desespero na hora do acidente. Estrada tranquila e ele descia a Serra de Petrópolis vindo de um culto por lá. Foi então que papai e eu lhe aparecemos. Estávamos apavorados e gritando por socorro num carro vermelho e preto, antigo e luxuoso. O motorista, volante do lado direito, era um homem velho e magro. Um cara sisudo que parecia viver nas sombras, de tão branca que era a sua face. Demonstrou, com um esgar, o absurdo que sentira e definiu que, por desencargo de consciência, terminada a descida daria uma paradinha na praça do pedágio e me ligaria. “Vai que a gente estivesse necessitando de apoio na viagem?” E foi aí, ele continuou, que a alucinação explodiu. Tudo se tornara a mais louca realidade. Pela segunda vez Anselmo me implorou para que não o julgasse bêbado, ou drogado.

“No meio do túnel um carro piscou faróis. Estranhei, pois que a pista é dupla e não havia nenhum problema para que me ultrapassasse. Após a saída ele se mantinha colado à traseira. Dei seta para a direita e fui reduzindo a velocidade e o auto, ao invés de me deixar para trás, também freou. Acelerei novamente e ele bem próximo a me seguir. Chamou-me a atenção o fato de haver três luzes bem fortes no estranho automóvel. Lembrei-me dos papos intermináveis de papai a me ensinar que um terceiro farol, centralizado, era característico de modelos dos tempos clássicos do seu maior sonho: Rolls Royce. Já que ele não partia, resolvi acelerar ao máximo, mas foi em vão. De repente me vi diante de uma curva acentuada e reduzi a marcha para fazê-la. Ele me ultrapassava. O idoso claro e do rosto fino dirigia o carro e me mirou com ódio. Através do vidro via você e papai chorando. De repente ele pisou fundo, entrando na curva com tamanha velocidade que seria impossível que permanecesse na estrada. Desesperado por tê-los visto daquela maneira, acelerei também esquecido de que vocês estavam no Chile. Entrei na reta e já não havia nada adiante. Pisei mais forte e ingressei na segunda curva a toda. Voei ribanceira abaixo. Antes de apagar, a última coisa que senti foi o cheiro das bananas. Conforme o agente da Polícia Federal, foram Deus em primeiro lugar e o bananal em segundo, que me seguraram no mundo. Não fosse a plantação, eu teria despencado em um precipício de cento e vinte metros.”

A enfermeira pedia para que me retirasse, pois as visitas tinham terminado. Assustadíssima, tremia demais a ponto de ela me perguntar se me sentia bem, ou se precisava de algo. Agradeci ao Deus do meu irmão, por ele ter permanecido de olhos fechados por todo aquele tempo. Tudo que eu não desejava era que visse estampado em meu rosto o pavor.

Zonza e perplexa, apanhei as duas malas com o responsável pela recepção do CTI e fui procurar papai. Esforçava-me para acalmar a mente, elaborar um roteiro básico para lhe relatar as conversas, a do Chile - que então não havia levado a sério - e essa de Anselmo. Indaguei pelo velho e o rapaz que guardou as bagagens me contou que, ao mesmo tempo em que eu entrava no Centro de Tratamento Intensivo, ele se virou para a outra banda e pegou o elevador. Papai corria perigo, uma voz interior me avisava. Aliviada, vi que ele estava sentado numa das cadeiras laranja da portaria. Ao me aproximar reparei em sua expressão de dor. Corri, largando as malas e, a três passos de mim, ele caiu. Gritei por socorro e quase imediatamente surgiu a maca, dessas com rodas. Era manejada por dois homens a empurrarem papai hospital adentro. Passou-se uma eternidade, até que da emergência saiu um médico jovem que, sem rodeios, se lamentou dizendo que “apesar de terem feito o possível e o impossível, o infarto havia sido fulminante.” 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 16/11/2017
Alterado em 16/11/2017


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