Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


DONA MORTE

Dona Morte

Os olhos se fazem brilhantes e ela tenta disfarçar o desconforto. Não bate palmas e muito menos canta o parabéns na festa da sobrinha Susana. Sussurra para si mesma: “Minha flor, você nem imagina o quanto isto me desespera. É que comemoramos o seu último aniversário. Daqui a poucos dias você, tão linda, tão jovem e tão querida, nos deixará.” Com um brigadeiro na mão, como a dizer, “já apanhei o meu doce”, dá um jeito de se safar do entorno da mesa.

Esbarra no futuro assassino chegando atrasado. Sandro exala a álcool e, sorridente, para diante dela esticando o rosto para o beijo. Asco enorme daqueles lábios sujos em sua pele. “Mil vezes a sombra devia ter vindo nele e não na filha.” Vai refletindo envolta em sua agonia. “E depois ainda tem gente dizendo que Deus é justo”. Rumina entre dentes.

Cassandra, angustiada, no interior de uma prisão da qual não enxerga possibilidades de fuga, tenta escapar da alegria e burburinho. Refugia-se na varanda do apartamento e de lá olha o mar de luzes da cidade. Odeia-se, mais uma vez, por conta da tragédia das premonições. “Fosse para ver coisas boas, as conquistas e as alegrias, seria tudo lindo e maravilhoso, mas dessas não reparo nenhuma. Só me chegam as desgraças”.

O pilantra tarado e daqui a uns dias assassino, chega em seguida. “Cunhada, eu sei que a gente teve uns probleminhas, mas seu coração é bom e está tudo esquecido, não é mesmo? Dei uns passos meio tortos, mas estou acertando a vida. Tentarei agendar uma conversa com Cássia para retomarmos o casamento e conto com você nessa parada. Fiz uns negócios intermediando aluguéis de imóveis e a comissão, valor alto, está atrasada. Pode me fazer um empréstimo familiar? O que preciso é coisa pouca, só para viver até a grana sair. Demora mais um mês no máximo.” “Você me causará uma tragédia infinita, seu filho da puta. A nuvem me mostra o carro caído no barranco. Você, trôpego, do lado de fora e Susana morta no banco do carona.” A mente trabalha ensandecida. Ânsias de voar no pescoço gordo do assassino. Algo lhe vem à mente e Cassandra se controla. Livra-se dizendo que avalia o pedido e que logo lhe dará uma resposta.

Ocorreu no primeiro apartamento deles, bem pequeno e de fundos. Susana tinha menos de uma semana de vida. Tarde de domingo e estava lá, mais do que de visita, para ajudar a irmã. Mãe e filha dormiam e ela diante da televisão, mais cochilando do que assistindo a um programa idiota. De repente, o susto. Sandro, bafo de bebida, a beijava e a envolvia em tentativas de deitá-la no sofá. Baixinho soprava em seu ouvido estar apaixonado. Aterrorizada, consegue enfim se safar e só teve tempo de apanhar a bolsa. A ninguém jamais disse o motivo de ter ido embora sem, ao menos, se despedir.

Como não reparou que elas estavam voltando? Desde cedo vinha sentindo um desconforto pelo corpo, a cabeça pesada. “Não devia ter comido carne ontem”, tentou se justificar pelo mal estar. Raiva por não ter percebido se tratar de um sinal do retorno das tétricas visões. Esforçou-se para ganhar ânimo e agora via que só tinha se enganado, dizendo para si mesma estar tudo bem. “Por que viera à festa? Houvesse notado que estava se transformando novamente na Dona Morte, teria arrumado uma boa desculpa e permanecido quieta em casa. Iria fazer falta, reclamariam, mas teria sido o melhor. Afinal, não a chamam de monja, sempre recolhida em seu canto? Devia ter faltado ao aniversário e curtido um cinema em casa. Não por acaso, a lista de filmes a serem assistidos só tem crescido.”

Balança negativamente a cabeça pela estranheza do pensamento que tenta, em vão, afastar. Mergulhada na imagem há pouco presenciada e que lhe gera uma angústia mortal, ela está a pensar em cinema. “Um dia, um gato”, o filme que marcou a sua adolescência lhe vem, inteiro. Identifica-se com aquele felino de óculos, capaz de perceber o que sentem as pessoas.

Está deixando o pessoal incomodado. A todo momento aparece alguém perguntando se está tudo bem, querendo puxar assunto, ou mesmo levá-la para algum grupo de parentes a conversarem animadamente. Escolhe a roda onde está Tio Afrânio. “Como ele fala pelos cotovelos e tem sempre um tanto de casos e piadas para contar, não será necessário interagir, além do que Sandro e ele não se bicam. Só preciso fingir que me faço presente. Sorrir quando derem risadas, fazer cara séria naqueles momentos em que os ouvintes se mostram sóbrios e preocupados.”

Ajeita-se na ponta de uma poltrona naquele canto da sala, o mais concorrido da noite. A cabeça gira em polvorosa e a ideia vai tomando forma: “E se enganar esta maldita sombra? E se for possível aplacar seu gosto de morte oferecendo-lhe, em troca, outra criatura?” Cassandra, mesmo consciente do absurdo dos seus pensamentos, esboça um sorriso. Viaja para bastante longe. Voa para a infância e lá, revive a descoberta da sua trágica habilidade.

Era a primeira vez que participava de um velório. Foi na casa de Naná e o morto era alguém da família, não sabia que grau de parentesco tinham. Recordava-se do defunto, um homem idoso, posto em cima da mesa no caixão coberto de pano roxo. Sentia raiva da mãe por tê-la obrigado a rezar o terço – aquilo não acabava nunca – em volta do féretro. A boca repetia as orações, enquanto a cabeça passeava pelo ambiente. Primeiro o morto: seus pés, mais próximos dela, pareciam-lhe esquisitos e desproporcionais. A sensação que teve foi que espocavam, muito finos e vestidos com meias cinzas, do meio daquele manto de flores. Excessivamente pálido, o rosto chupado e com a barba mal feita, o defunto a impressionava. Estava coberto por um véu transparente e mesmo que todos pudessem ver a cara do falecido, a todo momento chegava alguém para levantar aquele pano.

Dezenas de abelhas surgiram e muitas mãos femininas iam se movimentando, bem rápidas, sobre o esquife, como se fossem capazes de fazer com que elas abandonassem o banquete. As velas queimavam e o escorrer da cera criava esculturas estranhas que tentava decifrar. O cheiro enjoativo daquilo tudo lhe revolvia o estômago.

Levantou os olhos e, pela janela, viu seu pai lá fora. Fumava e ria conversando com os companheiros. Achou graça porque parecia que a fumaça permanecia pairando sobre ele. Uma velha tinha levantado o manto e era o seu pai que estava diante dela. As pernas bambearam e temeu despencar. As lágrimas surgiram e, acabada a reza, sua mãe a beijou dizendo-se bem surpreendida pelo carinho que ela demonstrava pelo finado.

Os ritos terminados e, final da tarde, a família voltava do cemitério. “Papai, o senhor vai morrer”, disse assim do nada e olhando para diante. Ele virou o rosto para a filha e sorriu. “Claro, minha querida, esta é a única certeza que temos na existência. Nós todos iremos embora um dia”. A mãe, incomodada, tentou cortar aquele diálogo macabro. “Vamos mudar de assunto, já tivemos muito de morte, desde ontem à noite.” Cassandra não a ouviu e continuou: “não, pai, o senhor vai morrer é daqui a uns dias só”. O tapa – a mãe violenta – feriu os lábios. “Vire essa boca para lá, menina agourenta. Jamais repita algo assim. Isto não pode ser palavra de Deus. O que você disse é coisa do demônio. Sim, do capeta, escutou bem?” Sentiu o gosto de sangue e se calou. O pai tentou consertar: “deixa disso, mulher. Coisa de criança, não bata nela por conta de uma bobagem dessas.” Uma semana depois, ao ver o vizinho chegar à escola e cochichar algo com a professora, sabia que iria ser chamada, que seu pai tinha sofrido o acidente fatal.

O corpo pesava toneladas e queria ir se arrastando. Atrasar ao máximo a entrada em casa. Mas estava acompanhada e, de todo jeito, a apressavam. Entrou pela cozinha e encontrou a mãe chorando alto.
Caminhou para acolher o seu abraço e reparou que aqueles braços tinham se tornado diferentes. Estavam rígidos e frios. Nunca conversaram sobre o assunto e isto não era nem um pouco preciso. Foi ali que ela tomou consciência de que a mãe passara a ter medo dela.

Naqueles tempos os maus presságios eram comuns, recorda-se em meio a mais uma piada do tio. Vem-lhe a lembrança do cãozinho rajado de Ana Alice, a melhor amiga daquela época. Viu a sombra, a morte sobre ele e, na maior das inocências, perguntou se estava doente. “Claro que não, sua boba. Não vê que Pimpão está todo alegre brincando conosco?” Dois dias se passaram e Alice faltou à aula. A certeza era a de que ela estava triste demais pela ausência do filhote. O velho ranzinza da bengala de madeira em curva, que vivia só e que ela sabia que havia morrido, mas que só foi encontrado tinham se passado uns três dias do falecimento. O colega da sala que ela observou que não iria sobreviver àquela noite e que morreu dormindo. Dora, a vizinha chata e implicante, atropelada pelo caminhão… Franze a testa imersa nas lembranças, ao mesmo tempo em que o último caso relatado pelo gaiato Afrânio, faz com que os ouvintes explodam em gargalhadas.

Na Quaresma todos iam se confessar e, por sentir que carregava na alma os mais terríveis pecados, o pior, sem dúvida, que era o da morte do pai, confidenciou ao padre o quão má ela era por causa daquelas visões da nuvem escura. A fila cresceu, pois que ele quis saber, tintim por tintim, de todas as vezes que tivera as tais imagens ruins. Maldita foi aquela hora, pois que depois de ouvi-la detalhar tudo, ele cresceu raivoso diante dela. A voz baixa era sibilante, passava-lhe a impressão de que cuspia. Ele a xingou muito dizendo que estava possuída pelo mal e que deveria procurá-lo no dia seguinte, às exatas 15 horas, para que recebesse as penitências e iniciassem as orações e as regras com vistas a livrá-la de satanás. Saiu apavorada, ao mesmo tempo em que dava graças porque o confessionário tinha uma grossa tela, a impedir que se visse quem estava do outro lado. O corpo sacudia em soluços. As colegas caçoavam por causa daquela confissão tão demorada e do choro convulsivo. Impingiam-lhe as maiores faltas que suas imaginações alcançavam. Além de jamais procurar o padre, também jurou nunca mais contar a ninguém daquela sua competência macabra.

Depois aquilo arrefeceu e, não fossem por alguns casos da aparição da nuvem sobre gente não muito chegada, seria capaz de dizer que tinha se libertado do horroroso pesadelo. O pavor de que iria perceber a morte do amado, impediu que deixasse os namoros se aprofundarem. A opção que tomou foi a de viver só. O desejo maior era o de ser médica, mas o medo de que os presságios se tornassem recorrentes nos seus pacientes, fez com que deixasse de lado este anseio. Escolheu ser contadora. Não lidaria com seres humanos, daria tratos aos números.
Mesmo assim, a vida tem sido um esforço constante para ajudar as pessoas. No momento exato em que se lembra do motorista de taxi, Marisa a cutuca dizendo não haver entendido a última piada e ela, que não escutara nada, sente-se incapaz de a ajudar. O que faz então é sorrir, parecendo displicente. A prima fecha a cara pensando que ela a tem como a mais perfeita idiota. E no carro, coberta pela nuvem negra, a cabeça do homem se abria mostrando a bolinha arroxeada, parecendo se mexer, em meio aos miolos. Ao pagar a corrida, lhe fez um pedido. Que procurasse, com urgência, um médico para lhe examinar o cérebro. Aparentando a maior descrença o rapaz a mirava com a expressão de que estava diante de uma louca. Teve a convicção de que ele só buscaria ajuda, quando os sintomas do tumor estivessem evidentes e aí já seria tarde.

Início da noite, chegando do trabalho, estava já dentro do elevador, quando reparou na chegada da moça com o bebê amarrado no peito. Apertou o botão segurando a porta e ela lhe sorriu agradecida. A criança dormia e a sombra surgiu nítida, pesada, sobre o seu corpo. A mãe tinha apertado o décimo primeiro e ela, moradora do sétimo, desceu antes. Naquela noite quase não dormiu. Sofreu terríveis sonhos e de dentro deles uma frase permanecia forte: “filho é que enterra mãe, e não o contrário.” Definiu que escreveria uma cartinha para dizer à mamãe do perigo que seu filhinho estava correndo, que buscasse auxílio logo. Por segurança, para que o encontro no elevador não fosse associado ao alerta, deixou passar uns dias. Pesquisou o número do apartamento e então foi até o 11, assegurou-se de que estava sozinha e enfiou o envelope por debaixo da porta. Umas semanas se passaram e soube, pelo porteiro, que aquele era um dia triste porque uma criancinha do prédio tinha virado anjinho. A cara de horror fez com que o porteiro arregalasse os olhos. A besta da mulher, constatou, não fizera nada com o aviso recebido.

Daí que viu ser bobagem fazer alertas. Voltou a guardar os presságios para ela mesma. Tudo foi assim até aquela hora da comemoração. Susana, menina amada intensamente desde a gravidez da irmã caçula, iria morrer, linda e jovem, no automóvel daquele crápula embriagado. Susana, a única pessoa no mundo que ela sentia que a amava de verdade e que, mesmo sem saber de nada, a compreendia em seus segredos e solidão. Tudo retornava no desespero daquele momento: a mão batendo em seu rosto, o padre a agredindo com palavras terríveis… O gosto de sangue chegou, de novo, à boca.

Aproveita que estão atentos ao Tio e, se esforçando para ser discreta, se levanta. Dona Morte retorna à varanda. Tem certeza de que o maldito virá em busca da resposta e o aguarda. Olha para o céu nublado e lança impropérios contra aquele Deus que, desde há muito, havia deixado de crer. Agora seus olhos passeiam pela cidade e se imagina, livre, a voar sobre ela. Repara que as luzes mais distantes parecem piscar. Mira, lá em baixo, a avenida ainda com algum movimento de carros. O antigo cunhado chega e ela se faz gentil. Finge lhe apontar algo interessante no passeio do prédio e ele se debruça sobre a mureta. Olha para trás e não há ninguém. O corpo pesado do bêbado, em seu pouco equilíbrio, facilita tudo.
 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 17/01/2018


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras