Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


COROA DE DEUS

O retângulo fino escorria pelo piso. Não satisfeito com o chão, encompridava-se mais, trepava na lateral da mesa de centro, se assentava no sofá bege e escalava a parede. Maristela, ao mesmo tempo em que admirava o brilho do sol em pedaço, estava em dúvida. Não sabia se obedecia as regras da casa cerrando totalmente a cortina, ou se seguia o coração, deixando que a luz invadisse a sala. As palavras a lhe martelar a cabeça: “Não sabe que desbota e mancha o tecido das poltronas?” Enfim se decide. “Dona Elisa que se danasse. Que viesse o sol e queimasse tudo, principalmente os pecados desta casa”.
Era uma fraca. A patroa tinha razão ao dizer que por conta do seu jeito sonso e indolente é que era pobre. “Jamais conseguirá algo na vida, morrerá doméstica”, afirmava com ironia. No último domingo tinha saído do Templo, mais uma vez, imbuída do propósito de pedir contas, afastar-se definitivamente do antro da perdição. “Permanecer num emprego desses é o mesmo que cavar a minha desgraça. Terminará fazendo com que me acostume ao ambiente de iniquidade e, como o sapo que vai se habituando com a água sendo aquecida, terminarei cozida no caldeirão de Belzebu.”
Fim da noite de domingo ia refletindo no ônibus, quase vazio, sobre a melhor maneira de concretizar a deliberação feita. Recordava-se das várias vezes em que a havia tomado e no outro tanto em que descartara o propósito realizado. Usava o pavor do desemprego como desculpa recorrente para se manter trabalhando com Dona Elisa.
Apertava a Bíblia orando em voz baixa pedindo coragem. Trazia-a bem à vista, no colo, para que todos pudessem perceber sua fé. “Quem sabe alguém cheio de pecados, ao ver a Palavra não se arrependesse, pedindo perdão e voltando o rosto para Deus?” Desde o dia em que a pregação da pastora Dejanira versou sobre este tema, nunca mais a Bíblia foi levada dentro da bolsa.
“Medo é sentimento que vem das bandas do Cão. O Dito Cujo gosta de assombrar aqueles que carregam uma fé frouxa e o manda, aos pouquinhos, até que o crente termine por viver refém dele”. Bispo Ananias gostava de explicar assim o medo. É claro que ele falava desse jeito quando a coleta do dízimo sofria baixas, o que computava ao temor de alguns fiéis de que o dinheiro iria acabar primeiro que o mês. “Esses, lamentavelmente, desconfiam do Todo Poderoso. Parecem ter escorpiões nos bolsos. É dando que se recebe, só entregando ao Senhor os 10% é que se poderá ser agraciado. Receber as provas de que Ele jamais abandona seus filhos”.
Passou a desacreditar no Bispo depois que ele se insinuou para ela. Não fosse aquele um homem de Deus, teria caído na tentação de escrever uma carta anônima para a sua esposa, a pastora Dejanira. Na dúvida, se possuía também alguma culpa no caso, pedia perdão por seu corpo e seu jeito terem trazido maus desejos a um casado e, ainda por cima, consagrado ao Senhor.
Implorava a Deus por um marido. “Será que Ele não repara que necessito demais de um?” Orava para que lhe fosse enviado um cristão bom. Um varão de fé que a ajudasse e que a protegesse. A vida, que já era tão ruim, se apresentava pior ainda na solidão da cama vazia. Não queria riqueza, seria muito pedir um homem livre para que, por exemplo, estivesse agora ao seu lado na volta para casa? Alguém para dividir as preocupações com as meninas? Não que quisesse dinheiro dele, tinha orgulho de ser autossuficiente.
Envolta na oração e no turbilhão de pensamentos, nem notou que a condução estava cheia e que alguns viajavam de pé. Só reparou no assalto quando o chefe do bando, corpo franzino incompatível com o tamanho da arma na mão esquerda, deu ordem em voz querendo ser de homem, mas escorregando no falsete de quem ainda era menino: “Na coroa com a Bíblia ninguém mexe que ela é de Deus”.
Pareciam ter experiência naquilo, pois era com rapidez e organização que faziam a limpa. Um a um iam tomando dos passageiros os seus poucos pertences. Poupados somente alguns celulares antigos, que bandido que se preza não aprecia coisa velha. Levaram até mesmo os trocados reservados para as passagens da manhã seguinte.
Imersa em tantos pensamentos, o olhar, que já estava na Bíblia, esforçava-se por se manter estático, mas vigiava, cantinho dos olhos, o ambiente. Afinal, o que de pior poderia fazer naquela hora, seria mirar o rosto dos assaltantes. Tarefa terminada e ordenaram ao motorista para que parasse. Escutou o barulho da porta se fechando e, ainda de cabeça baixa, louvou bem alto um “Glória a Deus que não estamos chorando mortos e muito menos machucados!”
Não houve ninguém para dizer Amém, ou repetir seu Glória. O que começou foi um chimchimchim de cochichos que iam aumentando de tom. Quando conseguiu ouvir assustou-se, pois que se voltavam contra ela. “Só pode ser amiga, ou parente desses bandidos. Essa história de ser de Deus é caô barato. Quem não é de fé aqui?” Fechou com força os olhos, como se estando cerrados também impedissem os ouvidos de escutar tal blasfêmia.
O bochicho aumentava e já tinha gente querendo que ela os ressarcisse dos prejuízos. Uma dona gorda sugeria mesmo que o motorista parasse e a deixassem por ali mesmo, a região dos seus amigos. Respirou fundo e foi se levantando devagar. Começou a falar, ao mesmo tempo em que os olhos miravam cada um à volta. Disse-lhes que não necessitava se defender, pois que o Senhor era sabedor da sua inocência. Mas que, se alguém ali achasse mesmo que estivesse coleada com os bandidos, que levantasse um dedo e aí sim, iriam conhecer quem ela era. Os olhares foram baixando e sentiu, pela segunda vez naqueles minutos, a presença de Deus lhe agraciando com milagres. Mais um pouco e a viagem prosseguia e até dava a impressão a quem entrava de que nada de diferente tinha acontecido.
Deu graças, deixou que a raiva fosse indo embora, e voltou às ruminações. Precisava agir assim, firme, com Cinara e Cibele. Com elas era manteiga derretida. Sentia as culpas que toda mãe carrega quando não consegue oferecer aos filhos aquilo que ela também não teve e tanto desejou. Precisavam entender que eram pobres e tênis de marca, aparelhos de celular caros e roupas novas todo mês, nada mais eram do que sonhos impossíveis.
Lamentou profundamente que elas não mais a acompanhavam aos cultos. Veio o medo – esse sentimento do Maldito – ao imaginar que as meninas deixadas sozinhas no barracão, poderiam ter saído de casa e estarem com más companhias pelas vizinhanças. Odiava as músicas indecentes que elas gostavam. Outro dia dera um tapa na boca de Cibele por estar cantando uma cheia de palavrões.
Arrependeu-se em seguida e desequilibrou ainda mais o dinheiro do mês, trazendo para as duas na noite seguinte uma caixa de chocolate daquelas mais caras. Fez então um pedido a Deus para que as livrasse dos perigos, implorou por mais ânimo para estar junto delas e paciência para escutá-las.
Repassava a vida e só se dava conta dos sofrimentos e tristezas. Sim, era uma mulher infeliz, e o que mais temia era que as garotas também não encontrassem a felicidade. Mais um ponto e o ônibus parou. Pôde ouvir alguém, ao descer, lançar um: “bandida, você também tem que morrer!”.
Será que era verdade o que tinham lhe falado, que o ex-marido já estava se enroscando em uma nova sirigaita? Tomara que fosse, seria muito bem feito para a amante sentir na pele o que lhe tinha causado. Mesmo assim, se pegava imaginando a volta de Renato. Imaginava-o, ele que nunca tinha dado um bombom que fosse para as garotas, trazendo-lhes mimos caros, ao mesmo tempo em que, como naqueles tempos da paixão, tornava a cuidar do corpo e do coração dela.
Agora essa amizade de Cibele com Leandrinho. O filho do justiceiro famoso que foi preso no ano passado e ficou por semanas aparecendo nos jornais da televisão. Queria que a filha fosse amiga de gente como ela, capaz só de fazer o bem. E se a sua menina acabasse por se engraçar com ele? Sentiu um tremor só de pensar em tal possibilidade.
Por que morava tão distante? Pergunta idiota ela se fazia, ponderou balançando a cabeça. Gente pobre morando perto do trabalho, só se fosse em barraco de favela e jamais que criaria filhas para algum gerente de tráfico botar a mão. Melhor ter a casinha nos finais do subúrbio, onde a milícia a protegia pelos R$ 25,00 religiosamente entregues toda noite de sexta-feira. Dinheiro que fazia falta, mas não reclamava. Afinal, era o preço da garantia de segurança mais que dela, das meninas.
Veio de novo à memória o apartamento. Desta vez a resolução tomada diante do Tabernáculo era para valer. Ela iria se demitir. Maldita a hora em que viu a cena. Dona Elisa dormindo abraçada com outra mulher. Mais amaldiçoada ainda aquela sua decisão de ir trabalhar no sábado para poder folgar na quarta e, pela primeira vez, participar de uma apresentação de teatro das garotas na escola. Como de costume, tinha deixado o bilhete na porta da geladeira dizendo desse arranjo. Com certeza que a patroa não o vira. A vontade primeira foi de acordá-las e denunciar aquela abominação. Conteve-se, foi fraca, cerrou com todo cuidado a porta e foi juntar as coisas para ir embora. Ali tomou a primeira decisão das tantas outras que tinha quebrado: nunca mais botaria os pés naquele prostíbulo.
Achou graça da sua leseira de não ter reparado antes, que quem frequentava os lençóis de Dona Elisa não era homem. Tão fácil perceber isto. De vez em quando encontrava a cama arrumadinha, ao contrário dos dias comuns em que a patroa a deixava para que fosse feita. Homem não cuida de cama ao se levantar. A falta de pelos no box do banheiro, as toalhas todas dobradas e o mais fácil ainda de ser observado: Em volta do vaso nunca houve pingo de xixi.
Era a última passageira e chegavam ao ponto final. Teria que andar ainda um quilômetro pela estrada escura. Ao caminhar rumo à porta escutou o “Glória a Deus que ninguém se feriu”. “Amém”, respondeu para o motorista enquanto ele lhe perguntava se seguiria ainda em frente. Balançou a cabeça afirmativamente.
Olhando-a num misto de força e ternura, ordenou que se assentasse e lhe indicasse onde morava. Afinal, era a última viagem e o patrão não precisava saber que ele havia esticado um pouco o trajeto. Acostumada desde criança, mesmo que a contragosto, a ser submissa, dessa vez sentiu prazer em obedecer. Aquela era a noite dos milagres e Maristela, se sentindo um pouquinho feliz, lhe sorriu.
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 30/12/2018


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