Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos

A Caixa no alto do armário 

A verdade é que sentia remorsos por não poder presentear Nataly com o brinquedo tão desejado. Seu sonho era a Linda Lucy, uma boneca grandona, daquelas de cabelo bem louro e com olhos que, ao ser balançada, se mexiam. Dois fatores, que conjugados se tornavam ainda mais perversos, justificavam a impossibilidade de ofertar tal mimo: o abandono do marido que partiu com a vizinha mais nova uns dois anos antes e o emprego de doméstica que exige demais e paga tão pouco.

Falou não uma vez. Repetiu esse não por duas três, muitas vezes. A filha reclamou, chorou, esperneou, mas não tinha jeito de se provocar um milagre e a vida que ia seguindo sem a Lucy. Só que as coisas não eram tão simples. Havia uma complicação. Algo que devia estar sendo lhe enviado como castigo só para reforçar a dor da consciência, por não poder presentear a garota. Não é que o maldito ponto de ônibus que tinha de apanhar na volta para casa, estava situado exatamente diante da loja de brinquedos? E lá se postava, todos os inícios de noite, a tal boneca a lhe olhar, fazendo boquinha de beijo, do lado de dentro da vitrine iluminada.

Esforçava-se por uma distração, contava carros, olhava para o alto, mas não adiantava. Estava irremediavelmente atraída pelo brilho da vitrine com a Linda Lucy. Chegou a dizer alto, achando que estivesse só pensando: “essa boneca mais parece uma maldição”. Caiu em conta de que falara alto ao ver que o senhor à sua frente se voltou para ela.

Naquele final de tarde chuvoso, o ônibus, quase sempre atrasado, parecia demorar ainda mais. Dali a uma semana, a data não lhe saía da cabeça, a menina completaria oito anos. Claudete fechou os olhos tentando pensar em outra coisa, numa boneca chinesa de camelô que cabia no seu orçamento, mas nada. Tal qual um chicletes, Linda Lucy estava irremediavelmente colada em sua memória. Deu então para pensar no tão pouco tempo que possuía para ficar com Nataly. Recordou-se de que nessas raras horas, além de cansada, estava sempre correndo com algum serviço, pois que casa, ainda mais tendo filhos, nunca que dá tréguas. Claudete então abriu os olhos e, de supetão, tomou a decisão dizendo para si mesma: “nem que eu me arrebente, mas a boneca vai comigo para casa hoje”.

Largou a fila e, passos firmes, entrou na loja. A balconista, toda gentil, chegou a duvidar que alguém, vestida com roupas tão simples, teria mesmo condições de adquirir a boneca mais cara que por lá havia. “Era a Linda Lucy mesmo”, ela reiterou e começaram a negociar preços e condições. Pediu, insistiu, contou sua vida e dificuldades, implorou, quase chorou rogando para que as prestações fossem um pouco mais espalhadas pelos meses, quase a perder de vista, adiante. Passados uns bons minutos e a negociação chegava ao seu limite. Claudete fez uns cálculos mentais e constatou que se economizasse pelo menos uma passagem todo dia, indo, ou voltando a pé da casa da patroa, além de que se sacrificasse mais um tanto nos produtos de higiene, beleza e nas roupas, já tão surradas, em um pouco mais de ano e meio Linda Lucy estaria paga.

Perdeu a razão e o ônibus, mas importa é que estava feliz. Com a caixa grande sob o braço teve que esperar pela nova condução. Viajou sorrindo sozinha da loucura e se perguntando se entregaria desde já o presente, ou se aguardaria a data do aniversário da filha. Mesmo com toda a ansiedade para dar o mimo, optou por esperar o momento correto de presentear.

Passou na casa da vizinha e pediu para que guardasse o presente da filhota.
Chegou enfim o grande dia, no caminho de casa, depois de apanhar a caixa, deu uma parada no supermercado para comprar uma tubaína e um bolo em excelente oferta por estar no limite do prazo de validade. Chegou em casa e mãe e filha choraram por um bom tempo de alegria. A mãe querendo abraçar e a filha no afã de rasgar o papel do presente. Enfim, Nataly pôde ver a sua querida Linda Lucy. Ao realizar o movimento de que iria tirar o fino plástico da caixa, foi impedida por Claudete. “A boneca é sua, fica tranquila. Só que ela vai ficar na caixa plastificada no alto do guarda-roupa até mamãe terminar de pagar as prestações dela. Imagina a boneca estragar e eu estiver com o carnê ainda pelo meio?”

A menina, é claro, era totalmente incapaz de entender tal lógica. A proibição mais do que funcionar como tortura, não fazia nenhum sentido na cabecinha de Nataly. “Mamãe estava louca”. Lamentou, choramingou, chorou forte, ficou amuada, parou de comer, quis fazer greve de ir à escola. Ficou tão triste quanto criança sozinha no pátio da creche em dia de visitas. Quem disse que a mãe abriu mão da regra tão estapafúrdia? Nada disto. Claudete estava firmemente decidida naquele seu propósito e não houve nada que Nataly pôde fazer que a fizesse mudar de ideia. A maldade parecia ficar maior ainda ao se constatar que a cama da garotinha ficava exatamente diante do armário. Diariamente, ao dormir e ao acordar a menina se angustiava, ao dar de cara com o objeto de desejo logo ali no alto. Linda Lucy tão perto das mãos e tão proibida.

Tudo passa, até a maior das dores e, uns meses depois a boneca foi deixando de ser lembrada pela menina. O fato de que a casa, muito pequena - um quarto, a cozinha e o banheiro – carecia de espaços para se guardarem coisas, fez com que numa dessas arrumações dos sábados, uma sacola azul, bem grande, de supermercado foi posta bem à frente da caixa plastificada.

Só Claudete, com aquele carnê terrível que parecia jamais afinar e um tanto de juros tendo sido pagos por conta de atrasos e renegociações, é que se recordava diariamente dela. E eis que após infinitas caminhadas, horas extras, salgados vendidos nas quermesses ao final das missas dominicais, ela pôde entrar, triunfante, na loja para saldar a última prestação de Linda Lucy.

Tremendamente aliviada, guardou para si o segredo. Esperou chegar o domingo. Queria curtir a filha a brincar também com a boneca. Manda que Nataly segure a cadeira bamba, sobe nela e apanha, enfim, atrás do saco azul, a caixa mágica. Fingiu que não reparou na indiferença da filha. “Ela só devia estar fazendo charme”, falou com seus botões. Ainda no alto da cadeira, pediu para que lhe trouxesse um pano velho e, antes de realizar a solene entrega, teve o cuidado de limpar a poeira que havia se acumulado sobre o plástico da caixa guardada, agora se deu conta, há mais de dois anos.

Nataly olhou com desdém o presente. Jamais que iria pagar o mico de brincar de boneca. O que gostava mesmo era de dançar funk e de Alfredinho – ah, ele é um gato!!!.


 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 18/02/2019
Alterado em 18/05/2021


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