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A CARTA, A SOGRA E O LIVRO DE CULINÁRIA
O dia, que era para ser bonito, amanheceu fechado e triste. A chuva e o vento frio faziam com que a vontade de permanecer na cama crescesse bastante. Leandro acordou antes de Marília e – Deus seja louvado – lembrou-se da data festiva do casal. Ela despertou envolta no seu abraço. “Chame sua mãe para ficar com as crianças que hoje iremos jantar fora”. “Que delícia, amor! Puxa, a nossa noite será bem romântica. Você sabe como isto me faz falta. Só tem um problema. Lembra-se de que lhe falei que mamãe está, de novo, com aquela ideia maluca de investir em um pequeno restaurante? Pois é, matriculou-se em um curso de culinária e só fala em comida. Não sei se hoje, terça-feira, é dia de aula para ela”. Ah, querida, você sabe que Dona Vera é capaz de fazer qualquer negócio para poder estar com as crianças. Mesmo que tenha aula, a minha convicção é de que, numa boa, ela faltará para vir aqui pra casa”. “Verdade, amor, você conhece mamãe melhor do que eu. Vou ligar agora cedo”.
A impressão que se tinha é que ninguém tinha deixado o carro na garagem. A cidade toda parada no engarrafamento colossal de final de tarde. Apesar de ter saído meia hora mais cedo, considerando o dia especial, comemoravam quinze anos de casados, e Marília o esperava para o jantar romântico no restaurante requintado. Não era um programa, como antigamente, que poderia acontecer bem tarde. Natália, a caçula, mamava no peito e era um perfeito reloginho. Dez horas da noite e lá do berço começavam a vir os resmungos. Não fosse atendida em, no máximo, dois minutos e o berreiro espocava infernal. “Essa criança, ou vai ser sirene de ambulância, ou cantora de ópera”. O avô, nas horas de choro, costumava dizer rindo.
Pelas câmeras da garagem o porteiro tomara conhecimento da chegada do Dr. Leandro. Do monte largado no lado esquerdo da mesa, separou umas poucas correspondências, deixadas naquele final de tarde pelo carteiro novo, certamente perdido em seus trajetos. Ele esticou o braço e ofereceu um boa noite automático que não foi respondido. Com a mão esquerda e sem olhar para o lado, ou diminuir a marcha, apanhou as correspondências. Mais do que a raiva pelo atraso, sentia-se preocupado com as reações de Marília. Na melhor das expectativas, esperava que ela o fosse receber com um bico enorme.
Aproximando-se do elevador, viu que ele, até então parado no quinto andar, deu início à escalada. Só parou lá na cobertura do décimo sétimo. Estacionou, seria a palavra mais adequada, eis que alguém só poderia estar segurando a porta do desgraçado. Fez menção de dar a volta e, do outro lado, apanhar o elevador de serviço, mas o empregado – sempre atento – foi falando: “não adianta, doutor, tem obra no quatrocentos e dois e o elevador está carregando sacos de entulho. Não voltará tão cedo”. Disse para si mesmo um palavrão e, para passar o tempo e, talvez já jogar no lixo praticamente tudo que havia recebido, passava os olhos nas correspondências. Extrato de banco que já tinha visto pela internet; conta do telefone fixo, que havia pago pelo débito automático – “para que precisamos desse trambolho? A serventia que tem é só a de receber chamadas dos irritantes call centers”; comunicado da escolinha da filha; pedido aflito e choroso de ajuda para uma ONG cuidadora de crianças... A última era uma dessas que não mais se costuma receber. Seu nome completo e o endereço escrito cuidadosamente a mão, numa letra que, coração disparado e olhos arregalados, imediatamente reconheceu.
Enfim, a porta do elevador se abriu e dele saíram dois adolescentes, bem magros, com grossas blusas e gorros, apesar do calor sufocante. Tendo obtido a confirmação, do outro lado do envelope, daquilo que já sabia, ele, agora de cabeça baixa, dava a impressão de ter perdido toda a pressa. O tremor das mãos ficou evidente ao rasgar, com cuidado, a lateral do envelope. A voz, que não saberia identificar se preocupada, ou irônica, veio lá da escrivaninha: “O senhor está bem, doutor?” Enfim, entrou na máquina, ao mesmo tempo em que a irritação ia subindo uns novos degraus. A porta já ia se fechar quando o vizinho do andar de cima, arrastando os pés, atravessou a porta de vidro acenando e pedindo para que apertasse o botão e o aguardasse. Tentando manter no rosto a expressão de calma, teve que esperar o velho. A aflição cresceu ainda mais um bocado porque, com ele ao lado, não seria nem um pouco conveniente ler nada, muito menos aquela folha de papel que o fino envelope guardava.
O ancião, como era de se esperar, puxou assunto. Desconversou, enfiando a carta no meio das demais correspondências. “Está suando, hein? Veio correndo, ou estava em alguma sauna?”. O velho, sempre com suas perguntas idiotas, mas para Leandro, aquilo nada mais era do que puro sarcasmo. “Como seu endereço havia sido descoberto? Pior ainda, que ousadia tamanha era essa de lhe escrever, ainda mais para a sua casa?” E Leandro, mais uma vez, tomava consciência de que se fosse descoberto estaria arrasado. Perderia tudo: trabalho, família, amigos e até mesmo a liberdade.
Abriu a porta do apartamento com aquele bolo na mão. Marília, assistindo televisão com Giovana, lhe sorriu, levantando-se para beijá-lo. Fez um gesto para lhe pegar as correspondências e o marido, como uma criança que não quer partilhar o brinquedo, recuou a mão quase a pondo às costas. A mulher riu, ao mesmo tempo em que lhe perguntava o que escondia dela. “Hum, já sei, é o meu presente, né? Pode me dar agora mesmo. Leandro riu sem graça por fora e fervendo por dentro e, como o melhor que tinha a fazer era concordar, balançou afirmativamente a cabeça. Acariciou-a e às filhas e célere partiu para o quarto. Ela veio atrás. “O que houve, amor? Você está tão esquisito. Beijou-me de um jeito estranho... E por que não quis me dar o presente? Brigou no trabalho? Está passando mal?” “Nada, querida, não aconteceu absolutamente nada, não vê que estou bem? Tudo está tranquilo e estou louco para tomar um banho e me preparar para o nosso jantar”.
Em suas ponderações, reparou que a única maneira de não deixar Marília grilada, seria lhe presentear com um cheque. Ela iria achar que era ele que estava no meio das correspondências. Só haveria de arrumar um jeito de, sem que notasse, pegar o talão na terceira gaveta para preenchê-lo e assiná-lo.
A esposa, pronta para sair, se recostou na cama e não dava sinais de que iria deixá-lo só. “Eu te conheço, amor. São quinze anos de casados e o dia é hoje. Somados aos três entre o namoro e noivado e temos o tempo da maioridade. São dezoito anos de íntima convivência e sei muito bem o que você sente e o que deixa de sentir”. Estava distante, a cabeça dava mil voltas, cada uma maior e ainda mais mirabolante que a outra. A esposa falava para as paredes. “Não, algo de muito sério está acontecendo. Meu marido chega, nega-se a me entregar o mimo que trouxe, beija-me de um jeito totalmente estranho e fica aqui no quarto paralisado, sem nem tirar o paletó e muito menos largar esse maço de correspondências”.
Em pânico, vislumbrou um caminho de fuga: Alegou estar morrendo de sede e partiu, quase correndo, para a cozinha. “E nem vai tirar esse paletó, criatura de Deus?” No canto do alto, lá no armário da cozinha, descobriu a salvação no interior do grosso livro de receitas. Puxou-o e, rapidamente, enfiou o envelope já aberto, entre suas páginas. Sobre a pia ficaram largadas as demais cartas. Tudo resolvido, hora de se acalmar e conversar amenidades para que as minhocas que a esposa já deveria estar cultivando na cabeça, não se desenvolvessem mais ainda. Na medida do possível, aquilo lhe dava alívio. Quando retornassem do jantar e a mulher fosse amamentar a filha, apanharia o envelope e o leria, tomando ciência de tudo.
Recordou-se do que tinha ido fazer e, sem sede alguma apesar da secura na boca, apanhou um copo e abriu a geladeira, serviu-se da água gelada e em seguida lançou o líquido na pia. O interfone tocou, atendeu e nada de melhor poderia lhe ter acontecido: a sogra chegava para ficar com as crianças. Ficaria só, pois que Marília iria se levantar da cama para receber a mãe. Cruzaram-se na porta do quarto. Ela o puxou, sussurrando em seu ouvido: “o senhor meu marido me deve muitas explicações”. Beijou-a querendo denotar displicência, livrou-se da roupa e deixou que a água, bem quente, escorresse pelo corpo.
Lamentando-se pelo furo de ter se esquecido de lhe enviar flores, ou de lhe comprar um presente, ainda nu, apanhou o talão e fez um cheque generoso para a esposa. Ao sair do quarto, pronto para a noitada, cumprimentou e agradeceu a Dona Vera pela disponibilidade em cuidar dos filhos.
Assim que passaram pelo portão da garagem, Marília tocou no assunto do incômodo da sua chegada e Leandro viu ali o momento ideal para enfiar os dedos no bolso da camisa. “Amor, eis aqui uma lembrancinha”. “Ah, mas o senhor meu marido está me comprando com presentes?”. Fez de conta que não havia nada por trás daquelas palavras e riu alto, ao mesmo tempo em que lhe dizia viver a dúvida de escolher entre um peixe grelhado que alguém no escritório tinha adorado, ou uma massa especial no Dom Coriolano, o lugar da moda.
O tema da carta não surgiu explícito durante o jantar, mas esteve oculto na cabeça de Leandro desde que chegaram ao restaurante, até a hora em que, ajudando-a a carregar suas sacolas o casal se despediu de Dona Vera à porta do elevador. Do tempo passado no restaurante não se lembrava nem da comida e muito menos do que bebera. Só se recordava do seu teatral fingimento em se mostrar bem para Marília.
Cabeça posta na cozinha, sugeriu que ela se arrumasse porque o alarme do reloginho da filha logo iria tocar. Aguardou junto fingindo estar procurando algo nas gavetas, até que, vindos do quarto ao lado, lhes chegassem os primeiros sinais de incômodo da fome de Natália. Levantou-se rápido, os resmungos se fazendo em choro, e foi apanhá-la no berço. Entregou-a no colo da mulher e saiu. Na cozinha, tomou o segundo choque daquela noite: no canto do armário onde até há pouco havia um livro, existia agora um buraco.Este conto faz parte do desafio do Encantos das Letras com o tema a carta perdida. Você poderá conhecer outros trabalhos dentro do mesmo tema visitando-nos em: http://encantodasletras.50webs.com/cartaperdida.htm
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 08/04/2019
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