Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


O RETORNO PARA A NUVEM NEGRA

Leves como plumas, voávamos cada vez mais alto. Costela dava latidos de alegria. Os velhos subiam conosco, os conhecidos e muitos outros que haviam nos precedido. Olhei para baixo e sorri: o desfile era imenso e lá vinham também, pintados com cores de festa, nossos guerreiros, as mulheres e as crianças. Eu, bem à frente, de mãos dadas com Anini, conduzia o nosso estandarte. Cantoria e dança em um contentamento que não tinha tamanho. A aldeia voltava à Grande Nuvem Preta, nossa casa desde todo o sempre.

Fui o primeiro a acordar. Meus ouvidos potentes escutaram os gritos da sentinela. Os malditos Bate Pau de Fogo se aproximavam. Corações em acelerados batuques e nos preparávamos para enfrentá-los. Tinha chegado a grande hora.

Parunco Chuntumbica, o Pajé, com vistas a me preparar contra o medo, os tinha trazido algumas vezes diante dos meus olhos cerrados. Via seus corpos roxos, os focinhos com as bocarras cheias de dentes e as testas com os três olhos de fogo. Ah, e os braços? Eram longos como jiboias gordas e donos de uma força descomunal, que os fazia capazes de arrancar todas as árvores da floresta. Pelas queixadas peludas percebia a baba verde que cuspiam a grandes distâncias e queimava mais do que óleo fervente.

Enquanto uns apagavam os fogos com areia e terra, outros eram incumbidos de libertar as criações. Conosco ficaram só os cavalos e mulas para transportar as comidas e carregar os idosos, doentes e as criancinhas. A grande tristeza foram os cachorros. Nunca houve tanto choro na aldeia como naquele momento terrível do sacrifício. Por mais que os enxotássemos tínhamos a certeza de que nos seguiriam e, fatalmente, nos denunciariam à matilha inimiga. Implorei ao menos por Costela e tinha argumento razoável, pois que naqueles anos todos, nunca que se havia escutado seus latidos. Mesmo concordando com a sua mudez, seria arriscado levá-la, me convenceram.

Divididos em três grupos, estávamos prontos. Só nos faltava a reza forte de Parunco, tornando-nos invisíveis aos olhos dos amaldiçoados e aos focinhos dos seus cães. Aquelas orações nos enchiam de coragem apesar da tristeza que nos apertava o peito. Uma parte menor dos guerreiros se punha de partida rumo à Serra do Piancam. O plano era que, chegando ao alto, acendessem uma grande fogueira para atrair os monstros, como se morássemos por lá. Deixariam que chegassem perto e desceriam pelas trilhas da Onça Manca. Correriam duas léguas e aguardariam os condenados no Passo de Mãetemba, lugar perfeito de se fazer a tocaia. Lá no alto do desfiladeiro tínhamos estocado montes de grandes pedras. Anini era a guerreira mais linda deste esquadrão. Ao mesmo tempo, o nosso exército principal, comandado pelo grande chefe Zabalu Rei, contornaria a Lagoa da Tapitinga, se repartindo e se escondendo pelas duas barrancas, à esquerda e à direita do Rio das Mortes. Desse jeito, os capetas sobreviventes depois de correrem no esforço de escapar da primeira arapuca, estariam novamente emboscados e seriam totalmente vencidos.

Mesmo sabendo do meu lugar no terceiro grupo, implorei para seguir com os guerreiros, não me deixaram. Afiançaram-me que cuidar das mulheres, dos velhos e das crianças, também era fazer a guerra e que o nosso velho Pajé precisava de alguém forte e sagaz ao lado. Tive que concordar. Em menos de meia hora, chorando ainda a morte dos amigos, marchávamos todos nos devidos caminhos. Estivesse com Costela teria olhos bem atentos naquela escuridão. Éramos, sem contar os de colo, umas cinquenta pessoas. As mulheres e as crianças mais espertas seguiam à frente, em seguida os idosos e por fim as mães com os miúdos de colo e umas grávidas. Depois de mim e do Pajé, ainda havia uns meninos maiores fechando o mato e raspando os pés no chão para diminuir os rastros.

Por maior que fosse o esforço, era impossível não haver barulho na caminhada. As sandálias toscas eram incapazes de protegerem os pés feridos a toda hora pelas pedras, paus e espinhos. Escutei o barulho de água e avisei. Paramos e duas jovens entraram no mato fechado, retornando pouco depois e nos dizendo que aquele era um ótimo lugar para descanso e que se o Pajé concordasse, poderíamos descer até o regato. Ele disse que sim e cansados daquela longa procissão morro acima, bebemos muita água e lavamos os pés machucados na corrente fria. Orientadas por Parunco Chuntumbica as mulheres misturavam lama ao urucum que tinham trazido e nos besuntavam. “Vamos nos esconder na Casa da Mãe Deusa da Pedra Vermelha. Ficaremos da cor dela e assim, nem os passarinhos e os lagartos conseguirão nos ver”, o Pajé afiançava.

Pouco a pouco, ia cessando a proteção da mata e o sol queimava os nossos corpos esturricados de vermelhão. Mais umas poucas horas e estaríamos no nosso destino. Aquele era um lugar sagrado e só os sacerdotes e os chefes é que subiam até lá para escutarem os conselhos da Deusa e tomarem as decisões importantes para a nossa gente. Iríamos nos esconder nos ventres da Mãe Rainha. Protegidos assim, a certeza de ganharmos a guerra se tornava ainda maior. No azar de que, ao final da luta, alguns endemoniados feridos houvessem escapado dos nossos guerreiros, o Pajé nos garantia que eles teriam deixado tanto sangue pelos caminhos de fuga e criado nas mentes um medo tão grande, que seria impossível que viessem nos importunar outra vez.

Será que a paz viria um dia? Ao mesmo tempo em que tropecei enrolando o pé esquerdo em um cipó fino, também duvidei. De imediato, bateu-me a vergonha pela desconfiança. Parunco tinha reparado nos meus receios? Nessas horas aflitas, tudo que acontece na cabeça da gente vem e vai na rapidez do bote da onça. Com o queimar do sol, pousou de novo em mim a certeza da vitória. Chuntumbica era mais do que amigo, ele era filho da Deusa e irmão dos seus súditos: os guardiões da floresta, os guias dos bichos mansos e bravos, os donos dos fundos da terra, os cuidadores das águas e os protetores das pedras e das montanhas. Todos eles, além da Deusa, lhe chegavam para as visitas no cachimbo do fumo de quirocó.

O cansaço era enorme. Vários dos nossos, principalmente os mais velhos, se encontravam bem além dos seus limites. Piorava ainda mais a situação, o fato de que havia várias clareiras na trilha, o que nos obrigava a, além de enfrentar a subida íngreme, também dar umas corridas, pois nesses lugares a gente se tornava visível a grandes distâncias. Enfim, ao final da tarde, chegamos. Não podia haver perda de tempo. O Pajé anunciou à Deusa a nossa presença, solicitando que nos abraçasse e escondesse.

A Mãe nos acolhia e os garotos e meninas maiores, junto às mulheres mais espertas, já iam, com as crias, escalando a fenda escavada na pedra pelas cachoeiras que, em seguida às chuvas, despencavam do topo. Caso caísse um aguaceiro aconteceria o desastre, mas aquilo, definitivamente, não nos amedrontava. A Deusa protetora iria segurar as nuvens durante a nossa estadia junto dela. Foram subindo até encontrarem um matacão bloqueando a passagem. A ordem foi para que se ajeitassem, se escondendo nos pequenos espaços oferecidos pela Senhora Mãe Rainha.

Ficamos, Parunco, sua mulher e eu segurando as rédeas dos animais, na aflita espera que todos se ajeitassem naquele caminho natural das águas. Imaginava que espantaríamos a tropa para que buscasse algum pasto distante da Pedra. Mas não era este o plano do Pajé. Ordenou-me que os ajudasse a montar. Iriam levar os bichos para bem longe. Não sabia o que falar e, antes de dar a meia volta, Parunco me surpreendeu de novo, ao me dizer que agora eu era o chefe. Senti orgulho e ao mesmo tempo tive certa dúvida da minha capacidade de mandar. Tateei a pedra e iniciei a escalada, até que bati a cabeça nas pernas da velha Mandinha.

O vento me trazia os latidos da cachorrada. O lugar no qual me meti ficava a uns quatro metros do chão. Ajeitei-me do jeito que dava, sentindo uns espetos nas costas e pernas. Mandinha me sussurrou pedindo para me passar um dos netinhos órfãos que carregava com dificuldades. Nhembém veio até os meus braços.

Havia que se cuidar para ninguém despencar, o que significava ir levando, embolados na queda, todos os que se colocavam abaixo. De tempos em tempos, para que os miúdos permanecessem calados, enfiávamos uns nacos de rapadura em suas bocas. Os que ainda mamavam eram mantidos, o mais possível, pendurados aos peitos maternos. Nhembém tremia e gemia sob a minha barriga. Antes que desembestasse no choro, peguei a cabaça com cachaça e despejei em sua goela para que dormisse. Engasgou e tossiu com o grande gole. Fiz uns barulhos de passarinho evitando assim que os Bate Pau de Fogo nos escutassem.

Sim, eles estavam bem próximos. Bem mais do que o pavor deles, sentia também o medo de que algum choro de criança, ou tosse de um velho nos denunciasse. Nem parecíamos gente. Éramos uma grande família de morcegos, bem quietinha, à espera que chegasse a hora da liberdade para voar.

O alívio foi grande ao reparar que os amaldiçoados tinham passado e já seguiam adiante. Mas haveria outros grupos. Eles não eram loucos de se enfiarem atrás de nós com poucos soldados. Certeza de que em outros pontos a multidão deles também estava a nos fuçar. Nem disse que era o chefe. Dava ordens à penca pendurada acima de mim e não recebia contestação. Todos me obedeciam. Mandei que aproveitássemos a hora tranquila para a distribuição de comida e bebida. Ser o chefe tem um gosto especial, experimentei ali naqueles momentos.

Queria saber do fogo que os guerreiros deveriam ter feito na Piancam e ordenei que lá do alto mirassem as bandas da Serra e me dissessem como estava a tal fogueira. Sim, eu queria saber das coisas da terrível guerra, mas também tinha muita saudade de Anini. Naquela última noite, minutos antes de nos separarmos, ela segurou minha mão e me disse que a vida só valia a pena com liberdade e que a esperasse, pois que ela iria buscá-la para nós dois e a aldeia. A resposta me deixou preocupado. Dava para reparar a montanha toda e não se via nenhum sinal de fumaça a se enfiar no céu.

Sem Parunco para me trazer a coragem, eu me tornara presa fácil do medo. E ele foi chegando através do pavor expresso na pele de Nhembém colada à minha. Então, passei a me perguntar: será que as coisas desandaram? Anini e os companheiros estavam presos? Nossos guerreiros tinham sido vencidos lá nas barrancas do Rio das Mortes? De novo seriam escravos? A Deusa tinha nos abandonado? A voz doce da Mãe me respondeu que não, que ela jamais nos deixaria sozinhos. De onde ela me falava? Colei o ouvido à Pedra e então pude escutá-la nitidamente. Ela afastava os meus temores me dizendo, com palavras lindas, que desde já éramos vencedores. Que o nosso povo jamais se renderia e nenhum de nós retornaria aos ferros e porões das fazendas.

A Pedra, que até aquele momento, dura e cheia de pontas, me feria o corpo tornava-se macia. Sentia nos ombros o toque das mãos finas da Deusa Rainha a me recordar o nascimento, a morte de mamãe durante o parto e de papai, herói da guerra antiga, no começo da minha infância. Ouvi-la era tão bom. Fez-me sorrir cheio de coragem ali naquele buraco. Abracei com força o bebê e tive certeza, mais uma vez, da vitória. Ninguém, nem mesmo os horríveis focinhudos, iria nos dominar. Éramos, para todo sempre, livres. Estava em minhas mãos a batalha da Pedra Vermelha. E eu sabia como iriamos nos defender no caso das coisas não funcionarem e sermos descobertos pelos Bate Pau de Fogo.

Que grande besteira tinham sido os meus temores. Tudo havia de estar sob o nosso controle. O fogo bem que devia ter acontecido do outro lado da serra e daqui dessa banda não teria jeito mesmo de percebê-lo. Voltei a escutar latidos dos cães e então ordenei a volta do silêncio e da quietude absoluta. Que distribuíssem mais aguardente aos pequenos. Melhor que dormissem.

A noite tinha chegado e nos demos conta de que os cramulhões retornaram e montavam acampamento um pouco abaixo do nosso esconderijo. Ali estavam eles: nossos vizinhos. Ouvíamos suas gritarias, cantos e as palavras estranhas que diziam. O cheiro da comida nos panelões nos chegava aos narizes e nos dava mais fome.

Um velho tossiu lá em cima. Excitados, os cachorros dos satanazes cheiravam o ar e, de repente, nos tinham avistado. Escalavam o paredão latindo desesperados. Senti que chegavam e danei então a chutar o ar, jogando-os para baixo, mas eram insistentes e voltavam. A dor da canela mordida veio forte. As benzeções e rezas de Parunco haviam falhado daquela vez. Era o momento fatal e dei a derradeira ordem: o retorno para a Nuvem Preta. Que os chifres com caldo de jequiriti e mandioca-brava fossem abertos e, a começar pelas crianças, que todos bebessem deles.

Entorpecidos fomos despencando uns sobre os outros, até que a Mãe Pedra já não guardava nenhum de nós no seu seio. Surpreendidos pela cena, nem mesmo os cães sabiam o que fazer. Os amaldiçoados imploravam ao Deus deles que os protegessem de nós, uns demônios loucos, mas, da gente eles nada sabiam. Éramos lindos anjos negros, tínhamos asas. E foi então que pude abrir os olhos e vi que Anini, tão bela, me acariciava o rosto. Não estávamos mais no chão ao pé da Montanha Sagrada.


(Quinto lugar no desafio fantasia do ENTRECONTOS)
 
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 12/04/2019


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