Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


IMAGINE

Passei os olhos pelo jornal, acendi o cigarro e parti para a diversão matinal daqueles dias. Escondido por detrás das grossas cortinas grená, observar os dog walkers passeando pelo parque com suas cachorradas. A curtição era contar quantos cães cada um conduzia. O recorde eram doze. Mas não foi que, do nada, apareceu uma moça desconhecida, alta e bastante magra, com treze animais? E por muito pouco ela não batia o segundo recorde: não haver repetição de raças entre os bichos.

Naqueles dias estávamos trabalhando em uma canção na qual via grande potencial de sucesso. Há cinco anos, com a queda de Saigon, terminara a guerra do Vietnam e continuávamos num mundo absurdamente violento. Era obvio que não havíamos aprendido nada das tantas lições havidas. Com o avanço tecnológico, o aumento da capacidade de eliminação dos inimigos só aumenta e os conflitos vão se tornando ainda mais mortíferos. Recordo-me de haver lido, naquele dia, uma notícia que me chamou a atenção no New York Times. O número de baixas na guerra do Vietnam, que achavam ter sido de um milhão e meio de pessoas, tinha sido revisto e já consideravam ter havido mais de dois milhões de mortos no conflito.

Haveria absurdo maior do que constatar que as guerras, somente nesse último Século, deram cabo de mais de cento e dez milhões de vidas humanas? E torna-se ainda mais louco observar, que nessas cifras somente estão computadas as mortes de soldados e das pessoas às suas voltas nos momentos de batalhas. Não constam desses números as baixas indiretas, ou sejam, aquelas que, com toda certeza, terão ocorrido depois de algum tempo, e isto por causa da fome, miséria, doenças e das tantas desgraças que vão chegando a reboque nos pós guerras. As pragas que a insanidade humana é capaz de provocar com a nossa brutalidade sem medidas.

Ao relembrar aquele dia fatídico, me dou conta de que a tal música tão promissora, foi totalmente abandonada. Ficou esquecida em alguma gaveta do furacão, em que a minha existência se transformou daí por diante.

Jamais tive coragem de retornar ao nosso apartamento. Ele permaneceu vazio por quatro anos. A ideia de transformá-lo em memorial foi de imediato descartada. Os vizinhos esnobes não aceitariam jamais algo assim por lá. Tomei então a decisão de vendê-lo. Nessa época eu já vivia aqui na Ilha de Marajó. Dei ordens para que nada fosse descartado, para que se encaixotasse tudo, pois não queria que nem um detalhe da nossa memória de felicidade se perdesse. Enviaram as caixas para um depósito não sei onde em New Jersey. Incrível como me esqueci totalmente da tal canção e repare que ela estava em estágio bem adiantado. Esse lhe contar a história me faz recordar de coisas que tinham sido, talvez por algum mecanismo de defesa, apagadas da memória. Passados quarenta anos me vem a curiosidade de perguntar para os músicos que me acompanhavam se eles se lembram da música. Quem sabe a tenham gravado, pelo menos alguns dos seus acordes, ou possuam rascunhos da letra... Caso não se recordem, uma segunda opção será o envio de alguém de confiança até o depósito para remexer as caixas, buscando-a em meio à papelada.

Acho que está dando para reparar que aquele foi um dia rotineiro, bem normal mesmo. Passamos a tarde no estúdio. Sean estava conosco e enquanto eu testava uns arranjos para o novo disco, ele tocava bateria, um pouco pior do que Ringo, mas se continuasse tentando, muito em breve o teria superado. Não estou sendo irônico. Era para que risse um pouco. Quero que a nossa conversa seja leve. Brinco assim mas, creia-me, Ringo é um grande homem. Um músico razoável, mas um ser humano de primeira ordem. Um cara de uma simplicidade tão grande que me chegava a dar até raiva. Yoko esteve ao meu lado me ajudando com seus palpites sempre muito pertinentes.

Olha, quero dizer que você pode se considerar privilegiado por estar lhe concedendo essa entrevista tratando da minha existência após o Oito de dezembro. Veja que nunca mais falei com vocês. Por que mantive esse silêncio em relação à imprensa? Claro que, tanto quanto eu, você é sabedor do meu porquê. Faz a pergunta não pela necessidade de saber tal razão, mas pelo simples vício de questionar que os repórteres foram desenvolvendo ao longo das carreiras. Não foi somente por conta do infortúnio que decidi parar de falar com jornalistas. Bem antes da tragédia as nossas relações já estavam em baixa. Sem dúvidas, que tudo começou com a entrada de Yoko na minha vida. Vocês criaram uma imagem totalmente falsa da minha mulher. Aos olhos do mundo ela passou a ser vista como um demônio terrível. Até pelo fim dos Beatles foi considerada culpada! Assim, os fãs e admiradores mundo afora foram criando uma tremenda antipatia e mesmo um certo ódio dela. Vocês a tratavam de maneira polida pela frente e depois, diante das máquinas de escrever, a criticavam ferinamente, mostrando-a como mulher venenosa, frívola e até mesmo pervertida ao desencaminhar o pobre e indefeso John Lennon. Não foram capazes de perceber o tamanho da genialidade dela.

Sim, eu sei que você não passou por isto. Estudou com Sean e se tornaram amigos. Como criancinha que era, não poderia ter vivido esse clima pesado que estou lhe relatando. Só para lhe dar uma ideia mais concreta dessa animosidade com Yoko, conto que o seu amigo Sean jamais teve, por parte dos meus fãs, a mesma atenção que sempre deram a Julian.

Bem, vamos voltar ao nosso foco. Estou falando de raivas passadas e tudo que não quero é reviver sentimentos negativos. Já me libertei deles há bastante tempo. A pergunta que me fez é para que lhe conte como foi aquele dia. Não vou dar voltas, quero permanecer na nossa trilha. Sim, eu sei que sou livre para falar o que quiser, mas é importante que mantenhamos o rumo da conversa. Caso, depois, ainda nos sobre tempo, posso avaliar uma possível volta ao tema ou, ao contrário, constatar que não valeria a pena mexer nesses arquivos guardados faz tanto tempo. Onde foi mesmo que paramos?

Ah, sim, estávamos no estúdio, Sean brincando numa bateria e eu experimentando uns arranjos diferentes para três, ou quatro, canções do novo disco. Yoko me assessorava e eu fingindo não reparar na vontade escondida que tinham em não considerar os seus palpites. Pirracento que sou, tinha coisas que nem queria ponderar, mas que passava a achar relevantes só para lhes mostrar a importância dela no meu processo criativo. Meu amor não somente me completava, ela fazia com que me tornasse um ser humano muito maior do que era até então. Com ela eu dei um salto quântico na existência. Que saudades eu tenho da minha Yoko. Sim, estou chorando. Foi ela que me ensinou a jamais esconder as emoções.

Ah, que a Pequena Yoko estaria feliz demais em viver esse tempo no qual podemos considerar que as guerras vão se tornando história. Aspectos tristes de um passado ainda recente, mas que jamais irá se repetir. A parte dela nessa realidade que está se fazendo: mais pacífica entre as pessoas, justa entre as comunidades e bonita, com a natureza exuberante e bem cuidada, é imensamente maior do que a minha. Isto é o que mais desejo que você e o mundo entendam.

Quando o trabalho rende eu perco a noção do tempo. Era noite e o estômago já tinha dado início aos lancinantes apelos por comida. Jantamos por lá mesmo e em pouco tempo Sean dormia em uma estranha poltrona com desenhos surrealistas. Yoko queria ir embora e lhe pedi que aguardasse um pouco mais. Fez um muxoxo, espremeu-se junto à criança e fechou os olhos. Mais umas duas horas de trabalho e, cansados, encerramos o expediente. Acordei-os e voltamos para casa.

Ao chegamos ao Dakota, a primeira coisa que reparei foi na presença do cara gordinho com o meu disco autografado e um livro debaixo do braço. As duas mãos se protegendo do grande frio que fazia, enfiadas nos bolsos da blusa. Peguei-me pensando nos motivos dele em me esperar, sem nem saber a que horas chegaria e muito menos se retornaria para casa naquele dia. Ao invés de buscar um lugar aconchegante para se abrigar do gelo da noite, havia permanecido ali à frente do meu prédio. Yoko acordou Sean e saímos os três. Meu filho correndo à frente e nós dois andando rapidamente atrás dele. Foi então que os estampidos me agrediram os ouvidos. Não senti dor, o corpo foi lançado para adiante e desabei. O que ouvi por último foi a voz de Yoko pedindo por socorro, enquanto Sean, com voz de choro, nos perguntava:

- Mamãe, papai, por que suas roupas estão ficando molhadas?

Despertei dois meses depois. Indaguei pela minha mulher e por Sean. Nosso filho estava bem, mas Yoko não resistiu ao tiro que aquele louco, o gordinho para quem tinha autografado o disco, tinha desferido. Enquanto estava hospitalizado pensava que ele havia atirado em nós dois. Ledo engano, e isto me causou o segundo choque fazendo crescer ainda mais – como se houvesse espaço para tal – a dor. O assassino louco tinha atirado somente em mim. Suas declarações nesse sentido eram bastante enfáticas. Em nenhum momento ele quis atingir Yoko. Eu, somente eu, fui o alvo.

Como desejei ter morrido naquela noite na entrada do Dakota. Passei meses envolto em pensamentos suicidas. E eles não me vieram por culpa de uma das balas ter se alojado na espinha, provocando-me a perda da sensibilidade e, consequentemente, os movimentos das pernas e pés. A cadeira de rodas foi o de menos.

Depois de um ano de muita tristeza e inútil e intensa fisioterapia, optei por deixar New York. Sean, por minha absoluta incapacidade de ser um bom pai, foi levado para viver com a família da mãe no Japão. Ao vê-lo novamente alguns anos depois, aqui mesmo nessa varanda, verifiquei o quanto estava mudado. Tinha se tornado um garoto mais contido, bem sério e de voz pausada. A tragédia, sem dúvidas, que o amadureceu demais.

Uma reportagem sobre a Amazônia me encantou e resolvi conhecê-la. Foi amor à primeira vista. Marajó, parecia estar em mim desde sempre. Foi o tempo de escolher o lugar ideal, comprar a fazenda, contratar uma construtora para fazer as adaptações na casa, ampliando-a e a tornando acessível a um cadeirante. Aqui crio búfalos, deixando-os viver até que a velhice os leve e mantenho também esse centro de recuperação de animais e aves silvestres que hoje, como podem ver, tem somente esses bichos sem a menor condição de sobrevivência na natureza por conta dos maus tratos sofridos. Os caçadores com as suas gaiolas e jaulas não mais existem entre nós.

Integrei-me totalmente, tornei-me uma espécie de monge curtindo a exuberância da natureza e meditando. A tragédia me aproximou novamente de George. Ele veio conhecer Imagine e se apaixonou pela região. Comprou uma fazenda imensa, bem maior do que essa, mais adiante, mas jamais teve a coragem de dar o passo definitivo e vir pra cá também. Quando sentiu que o câncer iria vencer, doou toda a imensidão das suas terras para que fossem transformadas em um parque e reserva ecológica. Isto é segredo, portanto, considere essa parte em “off”. George, onde ele estiver, talvez não gostasse que o mundo soubesse que foi fazendeiro no Brasil e que dessa sua propriedade nasceu um lindo parque que a tanta gente encanta.

Espera lá. Pensando bem, boas ações são para serem expostas. Por favor, desconsidere o que lhe disse acima. Pode publicar também o que lhe contei do George. Agora você me pergunta pelo Paul? Não sei se sabe, mas ele esteve algumas vezes no Brasil e o convidei para me visitar, mas sempre arrumou umas desculpas.

Na primeira metade dos Noventa vivemos dois genocídios terríveis. Um na África e o outro nos Balcãs, lá na Europa. Foi aí que me tornei ativo novamente. Fiz o que Yoko teria me animado a realizar, acaso aquele tiro equivocado não a tivesse matado. Consegui resolver os dois conflitos. Pacifiquei os Hutus e os Tutsis em Ruanda e mediei o conflito entre Sérvios, Croatas Macedônios.

Considero como uma façanha haver conseguido transformar o modo de atuação da ONU. Deu-me ainda maior trabalho a missão de criar o Conselho Espiritual, composto pelos líderes das grandes correntes religiosas e espirituais. Hoje, sentados diariamente na mesma mesa comum, eles refletem e decidem, também com os votos dos ateus e agnósticos sobre os problemas que mais afligem a humanidade.

Fico triste ao perceber que, por mais que eu tente demonstrar que o espírito da minha esposa é que deu alento a tudo isto, fazendo com que desde 2006 não tenha acontecido mais nenhum conflito e muito menos tenha havido uma criança que fosse a dormir com fome no mundo, o nome dela continua bem pouco lembrado. Só se fala em Lennon e na sua liderança para a criação da cultura de perdão, reconciliação, justiça e paz que implantamos.

Bem, você se arrancou do Japão e veio até o outro lado do mundo para me entrevistar. “Time is over”, preciso descansar. Essa longa conversa me trouxe emoção e quero ficar só. Vale o que combinamos para a realização da conversa. Você só publicará esta entrevista após eu ter ido morar com Yoko do outro lado das estrelas. Confio em você. Confio na humanidade.


Realizei esta entrevista com John Lennon no dia 27 de agosto de 2016, em sua propriedade rural no Norte do Brasil. Como bom jornalista, além de, com a autorização do entrevistado, haver gravado tudo, retornei para o Japão no afã de editá-la o mais breve possível e a deixar pronta e guardada para publicação no Toquio Shimbum no dia seguinte à morte do maior homem desses últimos mil anos. Carreguei comigo, secretamente, esse tesouro imenso. A entrevista foi toda editada e ficou muito boa. Só que tomei uma decisão diferente. Optei por transcrever e publicar para você, nosso leitor, cada palavra – sem perder uma que fosse - do nosso herói. Descansem em paz, Yoko e John.

Tóquio, 31 de julho de 2019
Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 26/09/2019
Alterado em 26/09/2019


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