Fernando Cyrino

Caminhando e saboreando a vida.

Textos


As Três Marias

O marido de mamãe apareceu. Estava entre o Recreio e a Barra, ao volante do carro estacionado numa praça. Lugar de pouco movimento e os vidros escuros praticamente impediam ver se havia gente dentro. Mamãe me contou que ele parecia vivo, como se à espera de alguém. Mesmo não gostando dele aquilo me abalou. Tanto foi assim que Maria Gabriela adiantou um mês. Apesar de não ter tido nem um pedacinho que fosse da festa de 15 anos, pelo menos, o presente chegou. A enfermeira me entregou o embrulhinho chorando desesperado. “Sua menininha tem fome e é você quem irá alimentá-la. A primeira vez é mais difícil, ainda mais na sua idade. Deixa que te ensino a dar o peito para ela”. Lamentei, mais uma vez, não ter abortado. Mesmo sem sentir emoção, quis sorrir, mas as lágrimas vieram primeiro. Gabi era clarinha. Perguntei se não teria havido alguma troca, mas ela riu muito e falou que filho de preto é igual filhote de urubu, sai do ovo branquinho. Que não me preocupasse, pois que logo ela estaria igualzinha a gente. Amor chega, mas é devagar até tomar conta de tudo e deixar a gente louca pela cria que entregou ao mundo.

 

Seria mentira se dissesse que não sonhei com a festa de 15 anos. Baile mesmo, em salão chique. O que mamãe, sem nunca ter tido marido, conseguiu me dar, economizando nem sei como nas faxinas, foi o baile viagem num ônibus rosa com vidros pretos, no qual levei quinze amigos para dançar, enquanto percorríamos com muito funk uns bairros de bacanas. Desde os dez anos frequentava as aulas de balé na Associação lá no alto do morro. Mas queria largar aquela dança. Todo mês de dezembro, nas peneiras para buscar talentos para a escola do Municipal, eu nunca passei nem perto de ser escolhida. Ao contrário, estava sempre no grupo das que dançavam no fundo do palco. Por essa época comecei a namorar Dayversonn, o Mc Day, que fazia sucesso nas paradas de funk da comunidade.

 

O único homem que amei de verdade estava morto diante de mim. Sou a Maria do dedo podre e todo cara que apontei para ele antes, aprontou para cima de mim. Joel, ao contrário, era perfeito: carinhoso, trabalhador, fiel, ajudava nas despesas de casa, só bebia cerveja comigo e nunca ficava bêbado. Sentia orgulho dele. Subiu na vida. Mesmo sendo morador de comunidade, tinha emprego no asfalto e era dono de carro quase novo. Não que a gente não tivesse uns arranca rabos, mas juro que ele jamais levantou a mão para mim. Sabia que se metera nuns negócios meio perigosos. Era segurança da Suzana, viúva do falecido Robério, o grande agiota da região. Depois da morte do marido ela assumiu os negócios. Joel me dizia que o povo aumentava e que nem segurança era, que o seu trabalho era só de motorista dos cobradores de Suzanão, que era assim que, sem ela saber, todos a chamavam. Mas à boca pequena uma amiga tinha me dito que ele era o responsável por apertar os devedores em atraso e isto significava, além das ameaças, agressões, tomada de bens dos endividados e, em casos extremos, quando se via que não haveria como reaver o dinheiro, a eliminação do pobre coitado.

 

Sabia que, adolescente, seria difícil assumir aquele novo papel. Mamãe até tinha como me ajudar, mas não se animava nem um pouco com Gabriela. Só se lamentava da má sorte com o marido assassinado. Dizia, de forma bem dura, que quem pariu é que tinha que criar. A verdade que não conseguia enxergar é que ela nunca gostou de Gabi. Por conta dessas coisas, até me arrependi de colocar Maria, o nosso nome comum, na minha filhinha. Como foi sofrido abrir mão da escola. Era complicado conciliar maternidade com estudos. Sentia falta das aulas, era aluna aplicada. Gostava muito de português e era a melhor nessa matéria. Tia Marcela dizia que eu tinha potencial e que seria uma grande escritora. Além das aulas, a turma da escola também me trazia saudades.

 

Mesmo sabendo que Day era o rei do morro e tinha outras meninas, acabei me apaixonando. Sim, havia outras garotas, mas de uma coisa eu tinha certeza, era a primeira, a oficial, as outras só amantes. Ter consciência disto me ajudava a aguentar a raiva e a dor de ter que dividir o amor. Nos bailes ficava sempre do seu lado. Nos poucos momentos em que ia para a pista, era comigo que dançava. O que nunca podia me esquecer era de tomar remédio. Ele detestava camisinha. No começo até que me cuidei, mas depois comecei a pensar que seria bom engravidar. Prenderia Day para sempre. Tendo filho comigo, ele jamais iria se envolver com as putinhas.

 

Gabriela estava se metendo com o galã da favela, Dayversonn. Mesmo sendo amiga de Conceição, a mãe dele, eu não punha o menor gosto naquele relacionamento. Estava evidente que aquilo não daria coisa boa. Óbvio que ele só desejava o rosto lindo e o corpinho delicado, perfeito, dela. Tinha certeza de que muito em breve a iria deixar e o Senhor ajudasse para que quando isto acontecesse, ela não estivesse com barriga. Não havia criado filha sozinha para passar pelo mesmo pesadelo que vivi. Orava todo dia era para que entrasse no bom caminho, se entregasse para Jesus e frequentasse a Igreja.

 

Saudades de Joel, queria tê-lo aqui comigo. Já se vão quinze anos da sua passagem e não deixo de lembrar dele. Aquele foi o tempo mais feliz da minha vida. Estou indo a uma mesa espírita para tentar contato com ele. O que acho lamentável é que Maria Cristina o detestava. Tinha sempre um pé atrás com ele. E o único desejo do meu amado era o de se aproximar dela. Deixar de ser padrasto distante para se tornar pai próximo e carinhoso. Mas ela sempre se emburrava quando Jó estava por perto. Fosse diferente, eu diria que seríamos uma família perfeita. Mas Deus tem seus desígnios e aquele dia terrível, o pior da minha existência, no qual estive na praça do Recreio onde encontraram meu marido. O policial que me ligou nem teve o cuidado de me preparar para a notícia. Despejou, como se contasse que tinha chupado um picolé, que meu homem fora assassinado num assalto.

 

Nunca soube de nada a respeito do meu passado. Queria saber quem era meu pai, mas mamãe nunca disse nada. Uma vez perguntei à vovó e só me contou que nem ela sabia. Que quando descobriu a gravidez de mamãe, menina de pouco mais de catorze anos, perdeu totalmente a cabeça e lhe tacou uma grande surra. Que ela apanhou bastante e sem dizer um ai. Uns anos depois, você já grandinha, Carmélia, vizinha com fama de fofoqueira, me confidenciou que, ainda naquela época, ouvira falar de uma história meio estranha. De que mamãe tinha se engraçado por um homem mais velho que conheceu na escola. Achava que fosse um professor. Só que o homem era casado e logo depois de engravidá-la, por castigo, teve uma doença e acabou morrendo. Como mamãe estudou na mesma escola que eu, levei esse caso para Dona Marilda, mulher que trabalhava na faxina desde aqueles tempos. Ela achou graça dizendo que nunca tinha ouvido falar de algo assim e que nenhum homem, professor, ou não, havia morrido por lá, muito menos de doença. O que houve e que foi lamentado por vários anos foi a mal explicada morte de uma professora. Emagreceu aos pouquinhos, perdendo a cor até que caiu de cama. Uns diziam que por desgosto de descobrir que o marido fora enfeitiçado pela melhor amiga e outros falavam que a morte dela foi matada mesmo, que o marido, para pegar a pensão e o seguro de vida, a assassinou colocando todo dia um pouquinho de chumbinho no café da manhã.

 

Como podia ser assalto se o assassino estava sentado ao seu lado no carro? Joel não trabalhava de Uber. Será que estava com algum endividado do lado? Alguém que o tenha levado para uma armadilha? “Vamos até o Recreio que lá receberei um dinheiro e saldarei uma parte grande do que devo para Suzanão”. Claro que não, isto seria impossível. Não havia alguém mais esperto e desconfiado do que o meu amor. A possibilidade de rabo de saia que companheiras me sugeriam jamais me passou pela cabeça. Joel sempre foi digno da minha confiança. Meu marido jamais iria me trair. Fato é que nunca acreditei nessa história de ele ter sido assaltado. O que sempre tive desconfiança era daquele time de capangas de Suzana. A vida para aquele povo não valia um centavo. Indício de que isto possa ter acontecido não havia nenhum. Até porque era muito delicado e perigoso investigar essas coisas. Vai que eles ficavam sabendo? Passava dessa para a melhor em dois pulos.

 

Ninguém sabe quem é o pai de Gabriela. Jurei levar esse nome para o túmulo. Defini ser esse um assunto restrito somente entre Deus e eu. Apanhei muito de mamãe e minhas colegas me cobravam que devia falar para poder receber pensão para a criação de Maria Gabriela. Durante o pré-natal uma médica muito cuidadosa para com as meninas grávidas, insistiu comigo para que denunciasse o pai. Se havia sido por prazer meu e dele, se era também um adolescente, ou até mesmo e ela falava exatamente assim: “Será que você foi estuprada, Maria Cristina?” O principal argumento dela é que a minha bebê tinha o direito de saber sua origem. A cada vez que me falavam disso eu reforçava meu não. Só que de uns tempos para cá foram me aparecendo vontades de botar luz na história toda. Gabi hoje tem mais idade do que naquele tempo em que a gerei. Além do mais, minha filha, não poucas vezes tem me perguntado sobre isto. Quero encontrar coragem para uma conversa de orientação espiritual bem franca com o pastor. Contar tudo e indagar se deveria mesmo guardar o segredo até o final.

 

Minha neta não veio em uma boa hora. Sempre sonhei com Maria Cristina casada na Igreja enfeitada de flores e com música. Joel entrando de braços dados com ela e eu borrando a maquiagem de tanto chorar na primeira fila do templo. A gente acalenta as coisas de uma forma e a vida nos joga na cara uma outra bem diferente. Por conta disso, nunca consegui ter muita alegria com ela. Sempre achava que iria mimar neto o tempo todo, mas Gabi poucas vezes teve o meu colo. Está claro para mim que minha filha sente grande mágoa por conta disso. Tem uma coisa que nunca tive coragem de contar: quando minha neta tinha três anos, comecei a reparar que ela possuía a mesma covinha que Joel. Antes disso, já havia tomado sustos ao vê-la dormir do jeito que meu marido dormia, os braços jogados para cima. A primeira vez que reparei podia ter sido só cisma. A segunda vez podia ter sido coincidência, mas quando constatei que aquela era a posição natural da minha neta dormir, as minhocas começaram a nascer na minha cabeça.

 

Quero morrer, tomar veneno de rato, pular na frente do trem. Não quero viver nem mais um minuto, pois a vida não vale nada. Day não me quer mais. Deixou de atender minhas ligações e nem aceita que eu o visite. Já me contaram que está com uma menininha que trouxe de uma comunidade vizinha onde agora também está animando os bailes funk. Pelo menos ainda tenho uma esperança. A menstruação não veio e quem sabe a gente não terá um filhinho. Aí, tenho certeza de que ele voltará correndo, todo feliz, para os meus braços.

 

O pastor acha que o melhor que tenho a fazer é permanecer calada. Caso eu bote a boca no trombone poderei correr sérios riscos. Melhor que ninguém fique sabendo dessa história, ele encerrou a conversa. Mas orei bastante e resolvi desobedecê-lo. E não quero demorar para fazer isto. Acontecerá o mais rápido possível. Reúno mamãe com Gabriela e, diante das duas, toco a melodia toda por mais trágica que seja. O que elas farão com o que eu disser será problema delas. Estou com Deus e com Ele me sinto poderosa. Sem o menor medo de haver consequências.

 

Quando as coisas começam a dar errado, elas vêm em fila, igual ao bonde da turma do movimento do tráfico. Um problema aparecendo atrás do outro. Pois fui abandonada por Dayversonn e agora a menstruação desceu. A chance que tinha de retomar meu homem foi embora. Está totalmente perdida. E pensar em ter uma última noite de amor com ele é loucura. Algo totalmente fora de cogitações. Day jamais que iria me conceder esse presente. E lá vem novidades: mamãe me disse, toda cheia das seriedades, que está pensando em me contar quem é o papai. Tomara que seja algum político, ou homem rico lá do asfalto para me tirar dessa vidinha desgraçada de neguinha de comunidade.

 

O mundo desabou na minha cabeça. As minhoquinhas que criava tinham razão. O pai da minha neta é Joel. O filho da puta do meu marido. Eu que me entreguei toda, eu que sempre acreditei nele e o cafajeste abusava da minha filha. E não foi uma nem duas vezes. Acontecia desde que a gente tinha se juntado, quando ela tinha doze anos. O maldito demônio dizia que se contasse, ele iria me matar e ficar só com ela como mulher dele. Eu achando que tinha um homem de bem dentro de casa e o que havia era um pedófilo, um abusador de menores. Mais ainda, abusador da filha da sua mulher.

 

Estou tonta com tanta coisa. Não bastasse o abandono do Day e eu não estar grávida, soube agora que sou filha do marido de vovó Maria. Mamãe era abusada há muito tempo e para acabar com esta desgraça tomou coragem para agir. Ela se aproximou do amigo de infância, o gerente da boca. Pediu-lhe emprestado um revólver daqueles pequenos, porque precisava resolver uma parada e queria levá-lo na bolsa. Ele lhe ofereceu segurança, mas ela recusou. Então, surpreendeu o homem de vovó Maria dizendo que desejava transar com ele e queria num lugar diferente. Levou-o ao Recreio, escolheu uma praça vazia e bem arborizada, apontou o lugar de estacionar e, com a arma na mão, aguardou seu abraço. Ele levantou os braços e tomou dois tiros debaixo do sovaco. O abraço não se concretizou e ele despencou sobre o volante. Arrumou-o no banco para que, de fora, parecesse que estava sentado esperando alguém e saiu. Com a barriga de oito meses mamãe não podia correr. Para esconder o sangue respingado ela vestiu a jaqueta pelo avesso. Caminhou o mais rápido que conseguia até chegar numa avenida. Então, mamãe apanhou o ônibus.

 

Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 04/04/2023


Comentários

Site do Escritor criado por Recanto das Letras